A barca furada de Noé

No cinema

04.04.14

O cineasta Julio Bressane disse uma vez numa entrevista que a indústria do cinema é a maior fábrica de lixo do mundo. Depois de assistir a Noé, de Darren Aronofsky, é difícil não lhe dar razão.

O filão dos épicos bíblicos é um dos mais antigos e prolíficos do cinema, tendo produzido ao longo de mais de cem anos algumas obras-primas e incontáveis abacaxis. Mais do que avaliar a qualidade dessa produção centenária, seria interessante observar que, mesmo girando em torno dos mesmos episódios, cada filme traz as marcas da época em que foi feito, reafirmando a frase de Benedetto Croce segundo a qual “toda história é história contemporânea”.

Noé de Aronofsky é um produto típico da cultura de nossa época, no que ela tem de pior, conforme procuraremos mostrar mais adiante.

O problema não é ter acrescentado algumas coisas e mudado outras tantas em relação ao texto do Gênesis. A literatura bíblica, em particular o Antigo Testamento, é marcada pela concisão, pelas elipses e lacunas, conforme aprendemos com Erich Auerbach. Portanto, é natural que, nas versões pictóricas, teatrais, cinematográficas ou mesmo literárias, essas zonas de sombra sejam preenchidas pela imaginação dos artistas. Do episódio de José e seus irmãos, que não ocupa mais do que uma página da Bíblia, Thomas Mann produziu um caudaloso romance em três volumes.

A questão é: o que se acrescenta? O que se modifica? Com que intuito?

Espetáculo sem espetáculo

Noé paga tributo a inúmeras pragas de nosso tempo, a saber: o primado dos efeitos sobre a consistência narrativa; a infantilização do imaginário do público (como justificar de outro modo aqueles risíveis gigantes de pedra?); a adoção de temas e dramaturgia de seriados de TV; uma escolha de elenco que busca menos a eficácia dramática do que a conquista prévia de públicos diversos (incluindo um constrangido e constrangedor  Anthony Hopkins para o necessário verniz “cultural”); a composição de uma natureza inteiramente artificial, sintetizada em computador, que lembraria O senhor dos anéis se não fosse pela falta de gosto, de poesia e, paradoxalmente, do sentido do espetáculo.

Quanto a esta última questão – o sentido do espetáculo – chega a ser uma façanha que Aronofsky tenha despendido US$ 150 milhões sem criar uma única imagem memorável, uma única cena comovente, coisa que os filmes kitsch americanos dos anos 1940 e 50 produziam em profusão (o Mar Vermelhos se abrindo aos pés de Moisés em Os Dez Mandamentos, Sansão derrubando as colunas do templo em Sansão e Dalila).

Monotonia ruidosa

A meu ver, isso se dá, por um lado, devido à facilidade trazida pelos efeitos digitais, que gera uma espécie de “vale tudo” em que a sucessão de sustos e prodígios em 3-D acaba por fazer com que eles se anulem uns aos outros, numa ruidosa monotonia. Por outro lado, é inanição artística mesmo. Um exemplo: na cena dos animais afluindo para a arca, os quadrúpedes são todos meio cinzentos, numa pobreza cromática que faz com que tudo pareça o rebanho de uma única espécie. O mesmo vale para os pássaros. De que adianta, no caso, usar os recursos digitais para a multiplicação do mesmo, para a reiteração do feio e do monótono?

Quanto ao drama vivido pelos personagens, salta aos olhos a ausência de grandeza humana. (Da sagrada então, é melhor nem falar.) A cena em que Noé (Russell Crowe, pior do que nunca) hesita com um punhal diante das duas netas recém-nascidas poderia ter a dimensão trágica de um “sacrifício de Isaac”, mas se dilui num sentimentalismo de novela do SBT ou programa religioso da Record.

Mil vezes a grandiloquência cafona em tecnicolor de um Cecil B. DeMille:

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