A bicicleta, a orfandade, a loucura, a traição: mais filmes da mostra

No cinema

27.10.11

 

O filme que mais me entusiasmou até agora na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo foi o belga O garoto da bicicleta, dos irmãos Luc e Jean-Pierre Dardenne.

 

Seu entrecho é de uma simplicidade brutal. Para começar, somos lançados logo de cara em meio à ação: Cyrill (Thomas Doret), um menino de 11 anos, foge do internato para tentar recuperar sua bicicleta, que ele acredita ter sido deixada pelo pai (Jérémie Renier, ator permanente dos cineastas) quando este mudou de cidade.

Marrudo, indomável, tenaz, Cyrill usa de todos os meios para invadir o apartamento vazio e procurar – em vão – seu aparente objeto do desejo. Na verdade, logo perceberemos, é em busca do pai que ele está. Uma criança órfã é como um parafuso solto na engrenagem do mundo, um erro, um desequilíbrio, uma ameaça à ordem das coisas.

Os irmãos Dardenne (de O filho, A criança e O silêncio de Lorna) estão em seu elemento ao encenar este drama de orfandade. Filhos sem pais, ou pais sem filhos, são o motor do cinema da dupla.

Drama de orfandade, eu disse, mas filmado com o rigor e a integridade. Outros diriam: a secura – habituais na obra dos irmãos. Cinema físico, substantivo, sem conversa jogada fora, sem muletas narrativas ou apelos sentimentais: Cyrill é antes de tudo um corpo lançado no mundo, em risco permanente de se chocar com as quinas da cidade ou se perder nos becos e desvãos da maldade humana.

A mise-en-scène é precisa, enxuta, com câmera na mão quando se trata de observar “epidermicamente” as reações intempestivas do protagonista, travellings generosos quando é o caso de acompanhar seus deslocamentos de bicicleta pelo espaço – momentos únicos, sublimes, de liberdade e plenitude, nos quais o mundo parece se tornar dúctil, maleável, para absorver esse pequeno cavaleiro moderno, que forma com sua bicicleta um ser único, indivisível.

O uso parcimonioso da música (sempre o mesmo momento lancinante do concerto Imperador, de Beethoven), as elipses que nos trazem a impressão de sempre estar entrando no meio de uma cena em andamento, a atuação extraordinária do menino Thomas Doret, tudo isso faz com que não haja um instante sequer de frouxidão ou “gordura” em O garoto da bicicleta. É com olhos bem abertos e o coração aos pulos que acompanhamos a saga do pequeno grande Cyrill.

Happy people – A year in the taiga

Filmando em parceria com o russo Dmitry Vasyukov, Werner Herzog registrou um ano na vida de uma aldeia perdida nos confins da Sibéria. O resultado fica em algum lugar entre a tradição do documentário etnográfico na linha de Robert Flaherty (Nanook do norte, O homem de Aran) e os especiais da National Geographic, só que sem a superficialidade e rapidez destes últimos.

A meticulosidade quase obsessiva com que se filma o cotidiano dessa gente rústica – quase inalterado há vários séculos – ao longo das quatro estações bem marcadas do ano é a grande virtude do documentário. Uma paisagem tão impressionante quanto a louca racionalidade que preside as vidas de seus habitantes.

O cinema de Herzog, como se sabe, tem duas preocupações constantes: a natureza selvagem e a loucura humana. Ocasionalmente, esses dois temas se imbricam (Aguirre, Fitzcarraldo, O homem-urso). É esse o caso aqui, embora a loucura esteja disfarçada sob a capa de uma lógica implacável de sobrevivência.

Uma carta para Elia

 

No afetuoso documentário dedicado por Martin Scorsese a seu mestre Elia Kazan (que tem vários de seus principais títulos exibidos em retrospectiva da Mostra), aprendemos a ver melhor o cinema do homenageado. Duas de suas obras-primas, em especial, são iluminadas magistralmente pelos comentários de Scorsese: Sindicato de ladrões e Vidas amargas.

A atitude controvertida de Kazan, ao denunciar companheiros comunistas ao Comitê de Atividades Antiamericanas, é vista pelo ângulo do que causou mais ao denunciante, transformado num pária entre seus pares, do que aos denunciados. Mas não é esse o foco principal do documentário, e sim a contribuição de Kazan para o amadurecimento da arte cinematográfica. É por aí que o documentário de Scorsese se converte em programa imperdível para quem gosta de cinema.

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