A causa comum da alegria

Por dentro do acervo

28.02.14

Em 1914, a Constituição da República Federativa do Brasil era uma jovem de 23 anos. Promulgada em 24 de fevereiro de 1891, instituíra a igualdade entre todos perante a lei, mas ainda parecia desconhecida ou incompreendida.

Caricaturistas utilizavam o personagem Zé Povo, sob diversas formas, para representar a população brasileira diante dos acontecimentos políticos e sociais nas revistas da época. Pesquisa no farto conjunto de periódicos da coleção José Ramos Tinhorão, sob a guarda do Instituto Moreira Salles, recuperou algumas charges e textos publicados n’O Malho e na Careta do carnaval de 1914.

Zé Povo travestido de Pierrot conversa com a tristonha Constituição de 1891 | O Malho, 21.2.1914 (Aryosto Duncan)

O Brasil, sob comando do presidente Hermes da Fonseca, em seu último ano de governo, vivia a “política salvacionista” – destituição das oligarquias tradicionais, substituindo-as pelos aliados militares, principalmente nos estados do Norte e Nordeste -, com a justificativa de eliminar a corrupção. O cenário era de revoluções, tomadas de poder, bombardeios nas cidades do interior, desemprego, problemas de saúde e ordem pública, miséria, seca e muitos boatos relacionados ao governo.

Cordão carnavalesco “Calamidades do Norte” liderado pelos personagens Banditismo, Salvadores, Revolução, Secas e Miséria | O Malho, 21.2.1914 (Aryosto Duncan)

 

Alusão à política salvacionista de José Marcellino de Souza, antigo oligarca e senador da Bahia em 1914, que batizou a cidade de São Marcelo (BA) em sua própria homenagem após a realização de obras. As iniciais J. J. remetem ao então governador do Estado: José Joaquim Seabra. | O Malho, 21.2.1914

 

Um grupo de boatos ataca a paciência pública com lança-perfumes | O Malho, 21.2.1914 (Leonidas Freire)

O Carnaval de 1914 surge como acontecimento muito bem-vindo, tanto para o povo quanto para políticos; trégua para a realidade conturbada. Mais de cem anos depois, qualquer semelhança é mera coincidência.

Como tristezas não resolvem problemas, é melhor celebrar o Carnaval | O Malho, 21.2.1914 (Augusto Rocha)

O aniversário da Constituição caiu exatamente na “terça-feira gorda” de Carnaval. Momo venceu a disputa pela atenção popular e, como não podia deixar de ser, o aniversário da lei ficou em segundo plano. O texto abaixo, publicado na edição de 21 de fevereiro de 1914 da revista Careta, é exemplo disso:

A vida elegante

Estoura nas ruas, formidável, o rumoroso zé-pereira do Carnaval. […]

A vida elegante, nestes tumultuosos dias carnavalescos, transborda dos salões em que a alimenta a aristocracia e vem palpitar nas ruas, em contato com as classes populares.

O Carnaval, parodiando a nossa Constituição, que assegura serem todos iguais perante a lei, soberanamente iguala a todos perante o prazer, que por todas as classes reparte sem desigualdade.

Graças ao poder nivelador do Carnaval, a nossa Constituição, cujo aniversário coincide com a terça-feira gorda, será simbolicamente executada num dos seus artigos.

 

Alguns personagens importantes do Carnaval de 1914 na capa d’O Malho: em destaque, o marechal Hermes da Fonseca ao volante, a Constituição de vermelho e o Zé Povo representado como um burro | O Malho, 21.2.1914, (Alfredo Storni)

Na mesma edição da revista Careta, o assunto é retratado em poesia assinada por ninguém menos que… Pierrot:

O Carnaval e a Constituição

Os povos têm governos que merecem,

Assim predisse um sábio com firmeza;

Há povos igualmente que se esquecem

De usar dos seus direitos de defesa.

Todos avacalhados desvanecem,

Procurando esconder toda a dureza

D’um cruel despotismo em que fenecem

As forças, ante a rígida torpeza.

Felizmente entre nós, tudo é folia,

O povo é divertido sem igual,

Ultrapassa os heróis da fantasia!

Não há no mundo povo mais feliz,

Pois no dia maior do Carnaval

Festeja a mãe das leis do seu país.

Ainda que os problemas de cunho político e social se repitam mais de um século depois, está aí o Carnaval, cuja única lei é a alegria.

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