A China de Jia Zhang-Ke, tão longe, tão perto

No cinema

20.12.13

Um toque de pecado estará em cartaz no cinema do IMS-RJ de 2 a 9 de janeiro de 2014.

Se a China é o futuro do planeta, como dizem por aí, estamos perdidos. Pelo menos a julgar pela China retratada nos esplêndidos filmes de Jia Zhang-Ke.

No mais novo deles, Um toque de pecado, atualmente em cartaz, as tensões e contradições acumuladas em sua filmografia anterior explodem em cenas de violência física que fizeram mais de um crítico lembrar de Tarantino. Mas todos os outros tipos de violência (psicológica, social, moral, ambiental, cultural) já estavam presentes antes – e continuam. Não há alívio ou catarse na sangueira espalhada na tela.

http://www.youtube.com/watch?v=VDKnSxmVwbI

O engenhoso roteiro, premiado em Cannes, encadeia quatro histórias independentes (mas que reverberam umas nas outras), todas envolvendo personagens em deslocamento, em busca de trabalho, dinheiro, justiça ou amor. A pé, de moto, ônibus, barco, carro ou trem, eles percorrem uma paisagem devastada: minas exauridas, fábricas desativadas, construções abandonadas pela metade.

O poder do dinheiro

No centro do filme há uma cena que condensa, talvez até de modo demasiado explícito, o significado último das várias histórias: irritado com a recepcionista de uma casa de massagens, que se recusa a fazer sexo com ele, um novo-rico a agride no rosto com maços de dinheiro. É disso que se trata sempre, no fim das contas: o poder do dinheiro e a violência que ele produz.

O contexto social e histórico é dado no primeiro episódio, o do mineiro Dahai (Wu Jiang), que se revolta contra o milionário de sua aldeia, enriquecido com a privatização corrupta da mina local. A cena em que o milionário retorna à aldeia em seu jatinho e é recebido com banda de música e o aplauso da população que ele explora, é um primor de humor cruel. Com suas roupas modernosas, seus óculos de astro de cinema, sua jovem namorada a tiracolo, ele é uma caricatura da “nova China”.

Sobreposição de tempos

E o que é essa “nova China”, senão uma bizarra sobreposição de tempos, em que a selvageria atual do capitalismo convive com os resquícios (adaptados e desfigurados) das fases anteriores, isto é, do império milenar e do comunismo maoista?

O capital comanda tudo, mas emoldurado por rituais coletivistas (a recepção ao milionário de jatinho, a recepção aos clientes do hotel/bordel de luxo) e religiosos: o assaltante de moto que acende três cigarros em honra dos deuses (ou dos espíritos dos homens que acabou de matar), o jovem casal à deriva que se detém durante um minuto para adorar a estátua da deidade Kuan Yin, conhecida no Ocidente como Deusa da Misericórdia.

Num dos impérios mais antigos e gloriosos da terra cresce hoje uma sociedade torta, em que tudo parece paródia, cópia, “de segunda mão”. Não admira que Jia Zhang-Ke, ao olhar para esse país degradado, adote, ele próprio, um tom sutilmente paródico, como na cena em que a recepcionista assediada e agredida reage assumindo de repente habilidades de mestre de artes marciais.

O anti-Tarantino

E aqui voltamos a Tarantino, que é uma referência para o cineasta chinês pelo menos desde Prazeres desconhecidos (2002), no qual um jovem delinquente tenta assaltar um banco imitando uma cena de Pulp fiction, com resultados desastrosos. Só que Jia Zhang-Ke é, de certo modo, o oposto de Tarantino. Se, neste último, a violência é quase sempre cartunesca, derrisória, desopilante, no cinema do diretor chinês ela aprofunda o mal-estar, acentua a sensação de ausência de saídas.

O que foi dito até aqui talvez dê a falsa impressão de que Zhang-Ke faz um cinema “sociológico”, voltado para amplos painéis da realidade chinesa. Mas não é nada disso. É inevitável que nós, espectadores ocidentais, tentemos conhecer melhor a China absorvendo todos os indícios presentes nos filmes vindos de lá, e que forcemos generalizações não necessariamente legítimas.

Na verdade, Jia Zhang-Ke centra seu foco em personagens concretos e complexos, não redutíveis a “tipos” sociais e muito menos a símbolos do que quer que seja. Consta que as histórias de Um toque de pecado são inspiradas em episódios reais. Isso pouco importa. O fato é que as trajetórias desses indivíduos vão compondo um mosaico precário e parcial da China. E o prodígio maior do diretor é expressar, no movimento ao mesmo tempo tenso e elegante de seus travellings, a solidão incontornável dessas criaturas no país mais populoso do mundo.

MAIS

Como o céu desabou sobre a China – José Carlos Avellar escreve sobre Um toque de pecado direto de Cannes.

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