A era da demolição permanente – Quatro perguntas para Guilherme Wisnik

Quatro perguntas

22.09.14

O crítico Guilherme Wisnik, professor da FAU-USP e curador em 2013 da Bienal de Arquitetura de São Paulo, fez a conferência “Mundo, obsolescência programada” no Rio (na Biblioteca Nacional, em 22/9) e em São Paulo (Sesc Vila Mariana, 24/9), dentro do ciclo “Mutações – Fontes passionais da violência”, organizado por Adauto Novaes.

Segundo ele, a urbanização violenta que pautou o início da modernidade, com destaque para as transformações em Paris realizadas pelo prefeito Georges-Eugène Haussmann no século XIX transformaram “o planeta inteiro em um imenso e homogêneo canteiro de obras”, e o preço está sendo cobrado agora.

A necessidade do capitalismo de construir coisas incessantemente, para fazer girar o dinheiro, resulta em que, segundo ele, os edifícios e as cidades sejam erguidos para durar cada vez menos. “O lucro está na demolição e na reconstrução permanentes.” 

Diante da situação preocupante da atual arquitetura brasileira, Guilherme Wisnik ressalta que os novos usos das cidades por parte da população podem dar a elas novos significados, como aconteceu nas jornadas de junho de 2013.

1. Que crítica você faz ao conceito desenvolvido pelo curador holandês Rem Koolhaas para a Bienal de Arquitetura de Veneza?

Rem Koolhaas já vem sendo convidado a ser o curador da Bienal de Veneza há algum tempo, mas uma das condições que ele impunha para aceitar, e que foi agora aceita, era a de que ele pudesse escolher um tema com um recorte histórico, evitando assim o “agorismo” das bienais. E, neste momento, essa proposta veio a calhar, pois em 2014 há a efeméride dos 100 anos da Primeira Guerra Mundial. Daí o tema “Absorbing Modernity: 1914-2014”, proposto às representações nacionais, que na geografia da exposição estão situadas no Giardini. Em poucas palavras, me parece muito acertada a proposta de um tema único para as exposições nacionais, e ainda mais um tema aberto, abrangente, mas não genérico nem neutro. Tratava-se de refletir sobre os processos de absorção, cristalização e crise da modernidade nos diversos continentes, nos diversos países e testar a ideia – do próprio Koolhaas – de que a modernidade produziu sequelas gigantescas e inesperadas, como as ditas “cidades genéricas” de hoje. Por outro lado, a efeméride da 1a Guerra é excessivamente eurocêntrica. Não estou certo de que a data 1914 signifique alguma coisa muito especial para a América do Sul, a África e a Ásia, por exemplo.

2. Em que medida foi violenta a “destruição criativa” que pautou os processos de urbanização no século XX?

Aqui está o cerne da minha conferência. Para a modernidade iniciada no século XIX, a violência destrutiva estava investida de um sinal positivo. Era preciso abolir as velhas barreiras para construir o novo. Haussmann demoliu trechos imensos da Paris medieval para construir seus grandes bulevares, isto é, a cidade moderna, a chamada “capital do século XIX”, a Cidade Luz, a metrópole dos pintores impressionistas e do flâneur de Baudelaire. A violência é a parteira das novas sociedades, diz Marx no Manifesto Comunista. Nietzsche professa a destruição alegre como princípio construtivo, uma filosofia construída com o martelo, diz ele. E o Fausto de Goethe, como bem mostra Marshall Berman, que o chama de “tragédia do desenvolvimento”, é o documento de bastismo da nossa era, uma era fáustica, que transforma o planeta inteiro em um imenso e homogêneo canteiro de obras, convertendo a natureza em paisagem técnica. Fausto, porém, precisamos lembrar, é um pactário. Alguma hora o custo desse desenvolvimento será cobrado. E acho que nós vivemos esse momento.

Minha conferência traça a ponte entre aquele momento, o nascedouro da modernidade, e os dias de hoje, mais ou menos um século e meio depois. O que foi prefigurado ali, e hoje se confirma cada vez mais, é que a urbanização é o grande instrumento de estabilização econômica do capitalismo, sobretudo depois do fim da Guerra Fria, com o declínio da indústria armamentista. No cruzamento entre capital financeiro e mercado imobiliário, a construção incessante, baseada na indústria da construção civil e na especulação de terras, disparou. A recente transformação de eventos esportivos em grandes negócios imobiliários, como os Jogos Olímpicos e a Copa do Mundo, é um sinal claro disso. Daí a minha hipótese de que o princípio da obsolescência, central para o capitalismo, tenha se deslocado das mercadorias para o próprio território. Cada vez mais os edifícios e as próprias cidades são construídos para durar menos. O lucro está na demolição e na reconstrução permanentes. E, nesse processo, a violência se normalizou, se despassionalizou, perdeu o componente construtivo contido na expressão “destruição criativa”.

3. Um de seus temas é a urbanização da China. Como você avalia as mudanças no país e de que maneira os filmes de Jia Zhang-Ke te auxiliam nessa análise?

Pois é, a urbanização chinesa é crucial para entender o fenômeno contemporâneo sob esse prisma. E os filmes do Jia Zhang-Ke tratam exatamente disso. Ele é, na minha opinião, um dos maiores artistas em atividade hoje. O filme Still life (Em busca da vida, 2006), é uma obra-prima. Passa-se em uma cidade (Fengjie) que seria parcialmente inundada com a construção da represa de Três Gargantas, e por isso os trabalhadores se dedicam ao trabalho árduo de demolição de metade da cidade. Os trabalhadores vêm de todas as partes do país, são massas de migrantes pobres de origem rural que estão se urbanizando, população flutuante que alimenta a vertiginosa quantidade de demolições e de construções na China de hoje. Há, ali, uma dialética terrível entre mobilidade (física) e imobilidade (social e psicológica). Na 10a Bienal de Arquitetura de São Paulo nós estudamos o caso de Ordos Kangbashi, na província da Mongólia Interior, uma cidade recentemente construída para 1 milhão de habitants e que permanece praticamente vazia, uma cidade fantasma. A fotógrafa Valentina Tong estava lá e fez um poderoso trabalho de fotos e vídeos naquele lugar inquietantemente estranho. Por que é que nós, hoje, ainda construimos cidades? Essa é uma pergunta que temos sempre que nos fazer. Não para responder que não se deve construir mais cidades, evidentemente, mas para averiguar as suas razões no zeitgeist contemporâneo. Voltando ao meu ponto, me parece que o sentido último, inscrito na construção de cidades hoje, deslocou-se do valor de uso para o valor de troca.

4. Apesar da nossa rica tradição arquitetônica, as grandes cidades parecem sofrer de uma galopante “miamização”. São preocupantes o presente e o futuro da arquitetura feita no Brasil? 

Já é preocupante há um bom tempo. Voltando à Bienal de Arquitetura, escolhemos como tema, e como título, “Cidade: modos de fazer, modos de usar”. Abordamos, portanto, a produção das cidades por um ângulo duplo: o projeto, o desenho, e também as forças econômicas e políticas que “fazem” a cidade, por um lado, e o uso que ela tem, por outro. Com isso, tratamos o lado do uso como um elemento ativo também, o uso como uma parte significante da história, afinal o uso dos espaços das cidades muitas vezes os transforma e ressignifica. Exemplos em São Paulo: a Virada Cultural, o Festival Baixo Centro, o intenso uso do Minhocão como parque aos domingos, a nova Praça Roosevelt, a batalha pelo Parque Augusta e, é claro, as jornadas de junho. O nosso diagnóstico, diante disso, foi que se temos razão para sermos críticos e pessimistas diante da instância do fazer – essa “miamização” a que você se refere, entre outras coisas – temos, por outro lado, razão para sermos positivos e otimistas diante do “usar”. Me parece que a população brasileira está entendendo que é preciso garantir a instância pública na cidade, e que esse domínio público envolve, essencialmente, a noção de conflito. Voltamos, aqui, ao tema da conferência. Gostaria de fazer uma crítica da violência e, ao mesmo tempo, um elogio do conflito.

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