À imagem e semelhança de Cthulhu

Correspondência

06.08.13

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Cthulhu

 

Cthulhu, personagem de H. P. Lovecraft

Ei Fausto, como vai?

É claro que não esqueci o nosso livro. Inclusive queria te propor, como uma alternativa ao desencontro de disponibilidades que têm sabotado esse projeto nos últimos três anos, a opção de já começarmos o rascunho propriamente dito. Em todo caso, na próxima vez em que você aterrissar em Sampa tomamos um guaraná com brainstorming.

O que aconteceu em São Paulo? Esta cidade é um universo tão grande que a perspectiva se dissolve na minha hipermetropia. Talvez eu pudesse analisar melhor a paisagem aqui no epicentro da agitação partindo do nível microcósmico – descrever o momentum de um balaço de borracha pela física newtoniana, determinar o coeficiente de dureza do cassetete, medir o pH do gás lacrimogêneo em contato íntimo com minhas mucosas – mas o fato é que eu não cheguei a esse extremo de envolvimento com as manifestações (por mais que eu goste de agregar prática à teoria, confesso que, na prática, a teoria dói menos). Se tivesse ido às ruas talvez eu dispusesse de informações melhores para avaliar resultado dessa medida opressiva tranquilizadora por parte das nossas autoridades em termos psíquicos, pessoais e coletivos. Mas vamos à teoria…

Adorei sua análise caleidoscópica. Complexidade é quase um eufemismo.  Como descrever em poucas linhas esse surto de massa, essa onda insurgente de indignação, revolta, demandas múltiplas, a resposta da violência policial, os aftershocks em forma de bagunça sem direção definida, a gagueira da mídia quando a marcha dos vândalos tomou proporções assombrosas, a prontidão dos nossos políticos em formular o discurso vago mais conveniente para o momento, e a fermentação desse oceano de insatisfações borbulhantes no curso de eventos de grande porte: a copa, as olimpíadas e a interrogação do que vem depois. É esse “o que vem depois” que mais me intriga, pois não tenho a menor ideia do que significa – que realidade mora nesse pedaço incógnito de futuro nacional? Acompanho os noticiários todos os dias e eles me dão a sensação de que nossa história termina em uma rua sem saída, com a copa do mundo e as olimpíadas. Depois? Bem, depois teremos estádios.

É difícil distinguir que criatura está tomando forma por trás deste – como você bem colocou – surto de massa e seu ruído de fundo, tão recente, tão presente, precoce demais para que seja possível um olhar distanciado que possibilite uma decodificação deste contexto histórico. Eu poderia tentar responder com ajuda da minha máquina do tempo, mas ela está quebrada. Na ausência de uma, acho que vou recorrer à estante de livros e enriquecer minha análise dos acontecimentos com aquele termo que gosto tanto, distopia. O Brasil sempre foi uma distopia maravilhosa – ou uma maravilha distópica, se preferir – e me dá a sensação de se tornar cada vez mais uma hipérbole de si próprio: o Rio cada vez mais Rio, Brasília cada vez mais Brasília, São Paulo cada vez mais tóxica… No entanto, minha visão não é tão caleidoscópica quanto a sua, Fausto, então vou contrariar o método do Brás Cubas e começar pelo começo mesmo.

Como sabemos, o estopim da Revolta do Vinagre foi o aumento das passagens de ônibus em São Paulo – que já eram caras para todos os padrões. Não vou entrar nos pormenores do quanto dói no bolso pagar quase dez reais para ir e voltar de metrô e ônibus de qualquer canto da cidade (eu mesma, em momentos de dureza extrema, preferi não sair de casa). Como dizia, esse foi o estopim, mas razões não faltam, e são tantas aporrinhações e estresses e apertos que passamos nesta cidade – neste estado, neste país – que o estopim poderia ter sido qualquer coisa: a saúde precária, o imposto, a conta de luz, o preço do tomate… É evidente que a origem da indignação não é o preço da passagem, mas, antes, uma reação catártica da população perante o encarecimento crônico da vida na cidade até o limite do impagável, do insuportável, do cansei.

Geralmente aquilo que é crônico não assusta, mas, ainda assim, me encontro em estado de susto. No Rio de Janeiro e em São Paulo o custo de vida alcança níveis europeus (só o custo, não estou falando de qualidade); isso nos leva a perguntar que bolha é essa que, à imagem e semelhança de Cthulhu, se levanta das profundezas derretendo o valor do nosso dinheiro? A inflação: um monstro antigo, que assombrou o país em carnavais muito passados e está acordando da hibernação, dissolvendo nossa capacidade de compra e derrubando a ilusão de que nossa economia nos daria dias melhores. É a especulação imobiliária, são os impostos sem retorno, é o preço da passagem, é a superinflação dos alimentos – morar, comer, estudar, ir ao médico, passear, comprar, ser feliz, em suma, viver: por que tão caro? Ou, para colocar a pergunta em termos mais pragmáticos: para onde está vazando a porra do meu dinheiro?

É uma pergunta desesperada, repare, é um grito. É a constatação por parte de cada cidadão comum de que, não importa o quanto trabalhe, nunca será o suficiente, ele não terá a contrapartida que lhe é de direito; isso somado ao conhecimento de que votar não funciona, e que sua liberdade de manifestação pode encontrar pelo caminho uma tropa de choque. O que fazer? De quem exigir? E contra quem se voltar se a origem da opressão não é facilmente identificável? Acusaram as manifestações de não terem foco, mas eu me surpreenderia se tivessem. Organização política nunca foi uma característica marcante do povo brasileiro. Nosso caso se parece mais com um estouro de manada: um surto sem direção alimentado pela catarse de todas as insatisfações acumuladas. O povo entrou em ebulição, mas feito baratas tontas (e bastante ressentidas).

Eu, que sou apenas mais uma barata à deriva nas minhas especulações, não tenho a ambição de encontrar sozinha a saída para este labirinto. Não vou subestimar a Revolta do Vinagre, que deu voz a uma insatisfação que também é minha – quem disse que sou imparcial? Torço para que as manifestações não percam a força, pois, quem sabe, assim chegaremos no ponto que faz a diferença, a ruptura, a virada de página – e que ele ofereça algo interessante para preencher aquela lacuna que me intriga: “o que vem depois?”. As manifestações no Brasil, o Occupy Wall Street, a primavera árabe, a atual batalha de informação e espionagem são acontecimentos interligados: pedaços de uma mesma criatura, essa que se ergue de um oceano de ruído. Os movimentos dos anos 10 são a resultante de uma tecnologia que inseriu algo inédito na ordem mundial: a democracia da informação. Internet, iPhones, câmeras: acesso global a dados, autonomia midiática e capacidade de organização para as massas.

Pensando assim, fico tentada a fazer um exercício de história alternativa. E se a tecnologia da informação fosse inserida como elemento anacrônico nas décadas de 1960 e 1970? O que teria sido dos nossos anos de chumbo se existissem internet e smartphones infiltrados que nem pulgas? Os militares conseguiriam rastrear subversivos cibernéticos? O AI-5 daria conta de amordaçar os “90 milhões em ação” xingando o governo e organizando manifestações pelas redes sociais? A ditadura teria durado vinte anos? Perguntas que me levam a outra, mais central: o quanto um povo conectado é mais forte do que um Estado opressivo? É para esta pergunta que as respostas estão apenas começando a surgir.

Considerando que guerras irrompem e governos estão sendo derrubados por dados que varrem redes sociais, não tenho dúvidas de que aqueles que detinham o monopólio da informação estão muito preocupados em mantê-lo. A revolução digital desencadeou uma revolução política. Tecnologias vêm para ficar, mas será que sua dimensão democrática está garantida? Os rumos tomados pelas histórias de Julian Assange, Aaron Swartz, Edward Snowden e Bradley Manning insinuam ser apenas a introdução da batalha que vem por aí nessa disputa global pela grande commodity do século XXI: a informação.

Sou uma viciada em informação e me considero extremamente sortuda por ter nascido no momento certo para testemunhar essa revolução em especial, com a consciência de que meu poder de acesso, hoje, como uma cidadã ordinária, é maior do que qualquer pessoa no século XX jamais sonhou. Fico me perguntando (e temendo) se, a esta altura, alguém poderoso não terá o poder de cortar os fios da rede. Suspeito que quem vencer a atual guerra da informação definirá o rumo de todas as manifestações, movimentos e inquietações que irrompem nesta década. Não é uma constatação maravilhosamente assustadora?

Caramba, Fausto, há ainda tantas outras coisas que eu gostaria de comentar, de políticos biônicos a zumbis teocratas, e vou ter que deixá-las para os próximos capítulos da nossa correspondência, junto aos paralelismos que gostaria de tecer com ficções distópicas. Enquanto isso, a previsão do tempo fala sobre mais névoa de gás lacrimogêneo, conforme novos protestos se desenrolam em nossas cidades. Vejamos que outras quimeras surgirão deste surto de massa.

Beijos,

Cristina Lasaitis

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