A imaginação literária (III): O sentimento do mundo na poesia

Séries

17.05.13

Este artigo conclui a trilogia A imaginação literária, publicada ao longo desta semana no Blog do IMS. Leia também os dois primeiros: O cérebro do jaguar e Romances da vida utópica.

Carlos Drummond de Andrade em 1982 (Madalena Schwartz/Acervo IMS)

Drummond em 1982 (Madalena Schwartz/Acervo IMS)

 

Só não roeu o imortal soluço

de vida que rebentava,

que rebentava daquelas páginas.

Carlos Drummond de Andrade

Pelo menos três escritores brasileiros, contemporâneos entre si, afirmaram que “escrever é cortar palavras”: Marques Rebelo, Clarice Lispector e Carlos Drummond de Andrade. Limpeza do texto, concisão, mot juste, confundem-se neles com estilo, tornando-se afinal característica da moderna literatura brasileira. No poeta, acrescenta-se pitada de mistério, fusão de eloqüência e silêncio: “E tu, palavra. / No mundo, perene trânsito, / calamo-nos.”

Diante dos acontecimentos, no entanto, Drummond não se calou. Durante sua longa vida aconteceu de tudo. Era criança quando houve a Grande Guerra, homem feito durante a Segunda Guerra Mundial e no fim da vida ouvia falar da Terceira Guerra, a definitiva. Fase de vivência, intermediária, caracteriza sua produção como “poesia pública”, durante a qual levou a poesia ao limite do mundo exterior, precisamente numa época em que as ideologias travaram, nos campos de batalha, guerra mortal.

Sob determinado aspecto, o drama do poeta Drummond se assemelhou ao drama, na França, de Saint-John Perse, poeta-exilado, que, de sua ação como homem público, não podia fazer poesia, e de sua poesia não podia fazer ação. Mas de Drummond se pode dizer o mesmo que Álvaro Lins disse de Mário de Andrade: poucas obras refletem o espírito do movimento coletivo, suas inquietações, verdades, erros, problemas, esperanças e desencantos.

O sentido revolucionário da poesia de Drummond não é o que leva a arte a penetrar nas massas, a exaltá-las, a ajudá-las a ter consciência das próprias misérias e necessidades: antes, transfigura o sentimento de inconformismo e revolta para comover a elite intelectual. Castro Alves tinha conteúdo social bem mais definido. Mas em Drummond a criação a partir de temas populares não chega intacta ao produto final; a forma é difícil, nunca disposta a concessões (“Se meu verso não deu certo, foi seu ouvido que entortou”).

Quanto mais o homem se torna parcelado, conforme a lição de Saint-John Perse, mais a poesia exprime a exigência de ligar o eu à totalidade da vida, vivida como presença, como maré montante do ser. No século XVIII, D’Alembert afirmou que os poetas só podiam reconhecer seriamente em verso aquilo que achariam excelente em prosa. Valéry, no século XX, concluiu que a poesia é justamente o contrário do teorema d’alembertiano. Ou, embaralhado à maneira drummondiana: “A mão que escreve este poema / não sabe que está escrevendo / mas é possível que se soubesse / nem ligasse.”

A poesia de Drummond está sempre em atitude de procura, pesquisa. Ele era o poeta mais representativo do modernismo, espécie de segunda geração que herdou do movimento apenas as virtudes (“Não serei poeta de um mundo caduco”). Sua visão de mundo envolvia atitude de humour, no sentido britânico, como o sobrenome. Nele se desenrolava sempre luta para reencontrar a infância, antepassados, visões antigas, não apenas para simplesmente recordar, mas para colocar tudo sob signo de atualidade. O tempo era a matéria dele, “o tempo presente, os homens presentes”. No livro de estreia, Alguma poesia, e em A rosa do povo, da fase de abertura para o mundo, deixou clara a filiação ao verso livre: “Mundo mundo vasto mundo, / se eu me chamasse Raimundo / seria uma rima, não seria uma solução” e “Não rimarei a palavra sono / com a incorrespondente palavra outono. / Rimarei com a palavra carne / ou qualquer outra.”

Em Lição de coisas chegou a jogo de maior requinte com a palavra, e afirmou que “toda forma / nasce uma segunda vez e torna / infinitamente a nascer”. Nesta altura de sua evolução começou a desintegrar a palavra que tão laboriosamente construíra, em poemas que diziam coisas como “e pá e pé e ui / e vupt e rrr / (…) / e limn e nss e yn”…

Buscava a beleza sem enfeites, descarnada. Tinha autodomínio, autocrítica, contenção. No decorrer dos anos, sustentou a poesia em um nível sempre digno dela. Mário Faustino reconheceu em Drummond o primeiro escritor brasileiro, embora em verso, a conseguir, depois de Machado de Assis, alto padrão daquilo que se chama em inglês diction, isto é, adequação das palavras utilizadas ao objeto expresso. Sua irreverência e ambiguidade jamais deixaram de ter sabor clássico. O coloquialismo vocabular, realista, quase ingênuo, é característica inicial. A depuração extrema, conforme salientou Sérgio Buarque de Holanda, é capaz de eliminar da poesia todo o prosaísmo. Na poesia de Drummond, o prosaico não é negação, mas antes condição do poético, como no poema “Quadrilha”: “João amava Teresa que amava Raimundo / que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili / que não amava ninguém.”

Na série de entrevistas concedidas no fim da vida, Drummond advertiu que o modernismo rompeu, inovou, deu novas formulações estéticas, mas ao mesmo tempo permitiu que todo mundo que não sabe escrever escrevesse. A poesia moderna atingiu grau de cacofonia de sons. Formalmente, não poderia ser mais livre do que já foi. O mundo absurdo, como o atual, erige padrões de cultura e os destrói. Alceu Amoroso Lima assinalou que a revelação de Drummond, durante o modernismo, não foi propriamente revolução. Ele não queria ser moderno, nem se importava de ser clássico. Libertou-se do próprio espírito revolucionário; era revolucionário que superou o espírito da revolução. Ao mesmo tempo, para repetir jogo de palavras de Alceu, era um requintado que beirava a poética esotérica sem jamais perder aquele espírito exotérico do homem comum, do homem do povo em sua vivência normal. Drummond: “Não cantarei amores que não tenho, / e, quando tive, nunca celebrei. / (…) / Minha matéria é o nada.”

Sua poesia é do tipo essencialmente trágico, e sua tragédia era não conseguir compreender o mistério da vida (Alceu). A poesia, como a história, é uma sucessão de imprevistos. Tudo em Drummond era fusão de extremos, contradição que não se contradizia (“Tenho apenas duas mãos / e o sentimento do mundo”). Seu canto é geral porque é ao mesmo tempo profundamente particular.

A poesia de Drummond não é em imagens, é em conceitos, comparável à poesia conceitualista do barroco. A tendência barroca da língua portuguesa se exaspera, refina-se, requinta-se em Drummond à medida que a poesia se liberta da disciplina da realidade, do freio da circunstância. Não era nem livresco como Eliot, nem indisciplinado formalmente como Cummings ou Wallace Stevens. Divergia da poesia formal de João Cabral, que, segundo ele, “está sempre à beira da explosão”. Para Drummond, poesia era sentimento, expressão de emoção. “O itinerário ideológico de João Cabral é totalmente inverso ao meu: ele era um individualista quando eu era comunista: depois, ele ficou pró-comunista e eu, individualista.” Quando alguém, dirigindo-se a ele, falava em Mallarmé, retrucava: “Meu guia é Manuel Bandeira.”

Mallarmé dizia que poema é mistério do qual o leitor deve procurar a chave. Em Drummond, é o próprio poeta que deve procurá-la, quando, ao se aproximar das palavras, cada uma delas pergunta: “Trouxeste a chave?” (“Procura da poesia”, em José). Em Brejo das Almas, diz que “a poesia é incomunicável”. Em Rosa do povo: “Diante dela, a vida é um Sol estático.” Desde o primeiro poema, quando um anjo torto lhe disse, “Vai, Carlos! ser gauche na vida”, manteve a disposição de revolta e incomunicabilidade, de defesa contra contágios exteriores. Sublinhava a própria secura, o recato (“Tenho horror, tenho pena de mim mesmo / e tenho muitos outros sentimentos / violentos”). Não procurava ser agradável, e nisto se assemelhava a Graciliano Ramos. Modesto, definia-se como homem comum (“Tive ouro, tive gado, tive fazendas / Hoje sou funcionário público”), e é sob esta ótica que o “fazendeiro do ar” deve ser apreciado. “A poesia mais rica é um sinal de menos.”

Quando necessitava, ia buscar matéria no “largo armazém do factível / onde a realidade é maior do que a realidade”. Mas a águia que alçou voo a partir da pedra no meio do caminho tinha também o seu pulo do gato:

O que sabe agora

Não o diz Drummond.

Sabe para si.