A linguagem do cinema

Cinema

02.09.11

O texto abaixo integra o folder da programação de Cinema do IMS-RJ e trata do papel do documentário hoje e de filmes e cineastas que fazem parte da mostra A linguagem do cinema (clique aqui). Nesta sexta-feira, dia 2, às 20h, após a exibição de Aruanda visto por Linduarte Noronha, Geraldo Sarno participa de uma mesa de debates sobre “os filmes para pensar” e a linguagem do cinema. No próximo sábado, dia 10, às 20h, o diretor estará presente na sessão de pré-estreia de O último romance de Balzac.

para José Antônio Pinheiro

1.

Uma nova proposta de linguagem cinematográfica paira sobre nosso cinema. Em Belo Horizonte, Fortaleza, Rio de Janeiro, Recife, Porto Alegre, São Paulo e Bahia, uma nova geração de cineastas rompe com as formas construídas desde o início dos anos 60, rompe com as formas estabelecidas pela mídia a reboque de Hollywood e inaugura uma nova maneira de articular a linguagem cinematográfica. Creio que seu objetivo central é fazer o cinema pensar, fazer do cinema uma linguagem que pensa. Uma arte do pensar.

Em um curioso livro intitulado Les grandes missions du cinéma, de Jean Benoit-Lévy, no capítulo V, dedicado ao cinema documentário, ao lembrar os vários termos sugeridos para nomear este novo gênero cinematográfico quando ele surgiu, comenta: “Alguns eram bastante sugestivos, tal como Think films (Films à penser – Filmes para pensar), proposto por Bosley Crowther, em sua crônica do Times.”

2.

No Manifesto do Partido Comunista de Marx e Engels, pode-se ler:

“A necessidade de um mercado em constante expansão para os seus produtos persegue a burguesia por todo o globo terrestre. Tem de se fixar em toda parte, criar ligações em toda parte.”

E ainda:

“Em lugar das velhas necessidades satisfeitas pelos produtos do país, surgem necessidades novas que exigem para a sua satisfação os produtos dos países e dos climas mais longínquos. Em lugar da velha autossuficiência e do velho isolamento locais e nacionais, surgem um intercambio generalizado e uma dependência generalizada das nações entre si. E tal como na produção material, assim também na produção espiritual. Os produtos espirituais de cada uma das nações tornam-se bem comum. A unilateralidade e estreiteza nacional vai-se cada vez mais tornando impossível e das muitas literaturas nacionais e locais forma-se uma literatura mundial”.

Este texto, publicado em 1848, uma descrição da dinâmica destrutiva e transformadora do capitalismo, em que “tudo que é sólido dissolve no ar”, com mínimos retoques talvez pudesse servir-nos hoje para descrever a mídia atual. A mídia em si já é uma indústria, que produz sobretudo imagens e sons. Impalpáveis, dissolvidos no ar. Mas constitui-se numa rede, assim como os vasos sanguíneos de um corpo vivo. O sistema sanguíneo do capitalismo de hoje é a mídia. Ele precisa desse sistema complexo e universal de comunicação para existir e funcionar. A imagem da mídia espelha a dinâmica da maquinaria global do capitalismo.

3.

Como, através de imagens (imagens visuais e sonoras), sabendo que elaborar imagens é próprio da atividade artística, construir conceitos, que é o específico da filosofia, parece ser o objetivo principal dessa nova geração.

Esse novo documentário abandona a postura onisciente do realizador, deixa de lado o discurso pronto (político, estético, ético) e aprofunda a vertente do documentário de investigação, de indagação sobre as coisas que acontecem no mundo, sobre a vida dos homens e da natureza. Como não pode estar seguro sobre o que vai encontrar e documentar, ao confrontar-se com o mundo dos homens e da natureza, termina por questionar-se a si mesmo, termina por indagar sobre os próprios meios de investigação, por indagar sobre a linguagem.

4.

A TV brasileira afinal absorveu a linguagem tradicional do cinema hollywoodiano dos anos 50. Nas suas duas vertentes: a religiosa, que divulga as crenças evangélicas, pentecostais e, em menor grau, a católica, a espírita, a umbandista; e na vertente comercial. Parece dirigir-se agora para a conquista da grande massa ascendente dos miseráveis arrancados da pobreza ou da miséria absoluta. As políticas de inclusão, da mesma maneira que esta indústria do dízimo televisivo que a espelha, não visa transformar as relações sociais que perenizam a injustiça e a desigualdade. Visam desenvolver a economia de tal maneira que um contingente maior da população saia do marginalismo e venha incorporar-se ao sistema para gerar porcentagem maior de mais-valia.

5.

Existe um cinema comercial, documentário e de ficção, dedicado a essa massa em ascensão. Essa nova classe média ascendente que pode derrubar o barraco e construir a casa de alvenaria na favela, que começa a frequentar o supermercado e a viajar de avião é a mesma que está sendo atraída aos shoppings para assistir filmes. E nesses filmes que lhe são dedicados vão encontrar os mesmos atores, a mesma dramaturgia, as mesmas histórias que se acostumaram a ver na TV do antigo barraco. Enfim, sentem-se em casa no shopping outrora inalcançável dos ricos. É a glória! Se se viam sendo curados dos males físicos e morais por pastores, médiuns e babalorixás nas telas pequenas da televisão, agora já aparecem como são, pretos, pobres e desdentados, nos programas nobres das grandes TVs comerciais, e brilham nos documentários multiplex dos shoppings; ou, quando ficção, têm suas vidas encenadas pelos atores famosos das novelas das 8.

6.

Analisar o fenômeno cinematográfico hoje pelo ângulo da economia, supondo que a questão da linguagem é uma questão secundária, uma questão meramente escolar, quando se fala de criação, creio que é um erro grave. Desde os anos 60 alguns tentaram corrigir essa visão. Fracassaram. Creio que já não podemos retardar mais essa questão. Não sei se nos salvará de algum desastre iminente, mas talvez nos tornem mais conscientes dos problemas que as novas gerações devem enfrentar.

Buenos Aires, 6 a 9 de julho de 2011

 * Na imagem da home que ilustra este post: o cineasta russo Sergei Eisenstein

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