40ª Mostra de Cinema de São Paulo

A Mostra e os sonhos de Bellocchio

No cinema

21.10.16

A Mostra Internacional de Cinema de São Paulo deste ano, a quadragésima, pode não estar tão recheada de novidades fortes como em anos anteriores, mas começou muito bem. Belos sonhos, novo filme de Marco Bellocchio, não apenas confirma a esplêndida forma que o cineasta italiano reencontrou na maturidade como também amarra várias pontas de sua inquieta filmografia.

Bellocchio, que terá na mostra uma robusta retrospectiva de seu cinema, chega a São Paulo neste sábado (22/10) para uma master class(domingo) e uma palestra na série “Memórias do cinema” (segunda), além de entrevistas para a imprensa.

Há uma curiosa simetria entre Belos sonhos e o primeiro longa-metragem do diretor, De punhos cerrados (1965). Na obra iconoclasta de juventude, um rapaz rebelde e atormentado acaba por cometer o matricídio. No novo filme, um menino perde a mãe aos nove anos e passa a vida toda tentando entender e assimilar o trauma.

 

Família, política, religião

No meio século que separa um título do outro, o cinema de Bellocchio articulou, com ênfases diversas, algumas linhas de força constantes: a família, o sexo, a política, a religião (leia-se a Igreja Católica). Todos esses elementos estão presentes em Belos sonhos, depurados por uma notável maturidade artística e humana.

Alternando de modo enganosamente aleatório vários momentos da trajetória do protagonista Massimo (Valerio Mastandrea, na idade adulta), o filme parece às vezes a ponto de se perder ao atirar em várias direções, mas sempre reencontra sua coesão temática e formal. A relação de Massimo com o pai, com a Igreja, com o clube de futebol Torino, com a profissão de jornalista, com as mulheres, tudo isso se entremeia com referências históricas, políticas e estéticas precisas.

Da série de TV Belphegor – O fantasma do Louvre (1965), que o pequeno Massimo via junto com sua mãe, ao rock pauleira do Deep Purple, do festival Canzonissima a excertos de filmes como Nosferatu e A marca da pantera, tudo configura um tecido complexo, em que cada referência ilumina as outras e reforça o sentido do conjunto: um mergulho (imagem recorrente) do protagonista no vórtice de seu trauma fundador. “Ele não perde a mão em nenhum momento”, comentou o cineasta e diretor de fotografia Lauro Escorel, encantado, à saída da sessão de abertura da Mostra.

 

Ética das imagens

Alguns locais – o estádio do Torino, a sacada do apartamento, a piscina – reaparecem de quando em quando, ressignificados a cada contexto. O demônio Belfagor (presente na literatura de Maquiavel, na ópera de Respighi e na telessérie com Juliette Gréco) e a frase “fai bei sogni” (tenha bons sonhos) vão mudando de sentido ao longo da narrativa.

Se o viés é subjetivo, nem por isso a inquietação política do diretor está ausente. A certa altura, Massimo, trabalhando como correspondente de guerra numa cidade destruída por bombardeios, entra com o fotógrafo numa casa em cujo quintal dos fundos jaz numa poça de sangue uma mulher morta. Pela porta aberta de um quarto vê-se um menino entretido em seu game no celular. O fotógrafo ergue o menino com cadeira e tudo e posta-o diante da porta dos fundos, inserindo-o na foto da mulher morta. Massimo, por sua vez, fotografa a ação do fotógrafo. Essa cena breve e admirável, que joga o tempo todo com a ideia do enquadramento, do recorte, do que se mostra e o que se omite, diz muito sobre a ética das imagens e o espírito (e a carne) de nosso tempo. Atesta, de quebra, a maestria de Marco Bellocchio.

 

Elle

É provável que um dos grandes filmes da 40ª Mostra seja o novo do holandês Paul Verhoeven, Elle, rodado na França e protagonizado por Isabelle Huppert. Essa atriz monstruosa – em mais de um sentido – encarna uma empresária do ramo dos games violentos que sofre, já na primeira cena, um estupro brutal. Longe de ser uma mera vítima, entretanto, essa mulher vai revelar a cada sequência uma nova e insuspeitada faceta, desconcertando o espectador num filme que parece reinventar-se a cada momento. Cinema vibrante, substantivo, irrequieto, provocador, como costumam ser os melhores filmes do diretor. Voltaremos a ele oportunamente.

 

A garota desconhecida

Como no anterior Dois dias, uma noite, o novo filme dos irmãos Luc e Jean-Pierre Dardenne, A garota desconhecida, presente na 40ª Mostra, é centrado nas andanças obsessivas de uma mulher. No primeiro, tratava-se do périplo de uma operária para manter seu emprego. Aqui, uma médica (a extraordinária Adèle Haenel), obcecada pela morte violenta de uma moça que ela podia talvez ter salvado, busca de todas as maneiras descobrir ao menos o nome da desconhecida antes que seja enterrada como indigente.

Reencontramos aqui uma das marcas registrada dos cineastas, a câmera na mão que acompanha de perto os movimentos e reações da protagonista, levando-nos não propriamente a uma identificação, mas a uma adesão à personagem. O olhar secamente afetivo dirigido a personagens singulares, a recusa das muletas habituais do melodrama (não há música nenhuma, por exemplo), tudo isso continua na tela, mas em algum momento parece haver um afrouxamento do toque – ou antes, do torque – dos Dardenne, em que o seu humanismo se dilui em humanitarismo, algo que pode até ser bom na vida real, mas certamente não para a arte.

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