A neve é um casaco esplêndido e quente

Colunistas

06.02.12

A cidade está coberta de neve, oito graus negativos. Começo a ler o pequeno volume, recém-publicado em inglês, com as “Histórias de Berlim”, de Robert Walser (tradução de Susan Bernofsky, ed. New York Review Books). O escritor suíço viveu aqui entre 1907 e 1913. Veio juntar-se ao irmão, Karl, cenógrafo de renome no fervilhante meio teatral berlinense do início do século. Leio que Berlim contava, nos anos vinte, com 37 teatros, além de cabarés e casas de shows. Fico sabendo, também pelo prefácio, que Walther Rathenau, futuro ministro das Relações Exteriores, que conheceu Walser durante a passagem do escritor pela cidade e foi assassinado em 1922, a uma centena de metros aqui de casa, chamava Berlim de “Parvenúpolis”, cidade dos parvenus ou novos ricos. Começo a entender uma série de coisas da cultura e da arquitetura locais, que antes me pareciam incompreensíveis.

No fim da sua malograda temporada berlinense, embora aqui tivesse escrito duas obras-primas (“Jakob von Gunten” e “Os Irmãos Tanner”) e vivido em circunstâncias “inspiradoras e revigorantes”, Walser reduzira seu círculo de amizades a um único indivíduo: a velha senhoria da casa onde alugava um quarto e que, apesar de sovina, amarga e rabugenta, continuou a abrigá-lo, de graça, quando o pobre escritor já não tinha um tostão. Eram duas almas solitárias.

“Por mais rica que ela fosse, era a mais pobre das mulheres”, ele escreve no texto “A Milionária”. E, num “estudo” intitulado “Frau Scheer”, sobre essa mesma mulher que se agarrou ao dinheiro depois de fracassar na vida amorosa e familiar: “Eu simpatizava com ela. Simpatias são coisas estranhas (…). As lágrimas de uma mulher rica e avarenta não são certamente menos sofridas e deploráveis, e tampouco falam uma língua menos triste e comovente que as lágrimas de uma criança pequena, de uma mulher ou de um homem pobres (…). Não, não é certo que um ser humano continue a chorar numa idade em que enxugar as lágrimas de uma criança deve ser considerado um ato sublime e  adorável”. Com a morte de Frau Scheer, Walser deixa Berlim para sempre. Volta para a Suíça, onde vai passar seus últimos 27 anos no hospício.

Além do humor ligeiramente desvairado que caracteriza a melhor prosa de Walser (e que levava Kafka às gargalhadas sempre que relia as metáforas alpinas com que o escritor suíço descrevia uma casa noturna em Unter den Linden, a resposta berlinense para os Champs-Elysées), “Histórias de Berlim” inclui um texto maravilhoso, de 1917, no qual o autor relembra o fim de sua temporada na cidade onde tinha apostado (e perdido) todas as fichas de sua carreira nas letras: “Uma Volta ao Lar na Neve”. Poucas coisas podem ser tão tristes.

Assim como Frau Scheer havia fracassado na vida sentimental, Walser deixa Berlim com o sentimento de ter fracassado na vida literária. Mas leva a gratidão das boas lembranças, das “muitas pessoas [que] acreditaram no meu talento e escolheram (…) reiterar repetidamente sua crença de que eu fosse capaz de alguma coisa; que reconheceram em mim a capacidade (…) de buscar a realização no palco iluminado do jubiloso e magnânimo ato de escrever”.

Walser faz o elogio da cidade que lhe permitiu viver tão alegre e feliz  por “uma substanciosa parte da minha existência”, mas pondera: “Embora trabalhando com todo o vigor que eu podia reunir, cometi erros. (…) Acabei compreendendo os meus limites e sendo forçado a admitir que muita coisa não podia ser realizada tão rapidamente quanto eu gostaria. A irritação e o cansaço tomaram conta de mim. Faltou-me força em mais de uma ocasião importante. Em vez de me contentar com o lucrativo, corri atrás do inatingível, gastando muito do meu tempo e da minha coragem. (…) Lentamente, tomei o caminho de casa.”

Walser deixa para trás o sonho da metrópole. E o mais comovente no que escreve sobre a derrota vem do esforço de abandonar também todo ressentimento e toda resignação. O humor ligeiramente desvairado, característico do absurdo e do nonsense, é resultado do arrebatamento de querer converter o sentido do mundo por meio das lentes demasiado delicadas da literatura; de querer que as coisas sejam possíveis ao mesmo tempo em que revela a sua impossibilidade. Walser volta para casa como um mendigo de cabeça erguida: “Não me considerava de jeito nenhum esmagado. Pensei em me chamar conquistador, mas logo comecei a rir. Estava sem casaco. E considerava a própria neve um casaco esplêndido e quente”.

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