O músico Bob Dylan

O músico Bob Dylan

A ousadia literária de 2016

Literatura

26.12.16

Aviso: esta não é uma lista de melhores livros do ano. Listas costumam ser encaradas com desconfiança, e não sem razão. Gosto é artigo bastante subjetivo, e parte da humanidade acredita que seleção boa é aquela que endossa a sua. É bem verdade que outra parte da humanidade aprecia listas para extrair delas não a confortável concordância com o umbigo, mas o saudável olhar sobre o desconhecido, o novo, a promessa que pode ou não se cumprir. Esta, porém, não é uma lista dos melhores livros ou indicações, ainda que muitos títulos tenham se destacado nas prateleiras das livrarias, nos prêmios, no afeto dos leitores. Não exatamente ao mesmo tempo, como de praxe.

Para não dizer que não falamos deles, um dos destaques foi o romance A resistência (Companhia das Letras), do brasileiro Julián Fuks, escolhido Livro do Ano de Ficção no Prêmio Jabuti, e detentor do segundo lugar no Prêmio Oceanos. Outro foi a esperada antologia Todos os contos (Rocco), de Clarice Lispector, organizada por Benjamin Moser, que conseguiu reunir pela primeira vez num único volume os textos curtos da escritora. Também esteve em foco a italiana Elena Ferrante, cuja tetralogia napolitana começou a conquistar o público em 2015 com o lançamento do genial A amiga genial, e consolidou-se em 2016 com a chegada de História do novo sobrenome e História de quem foge e de quem fica (todos pela Biblioteca Azul), exibindo o mesmo perfeito domínio das palavras, do controle da narrativa, e da brilhante arquitetura dos personagens que despertam amor e ódio em iguais proporções no desenrolar da trama.

Elena Ferrante, contudo, também se fez presente no noticiário não pela qualidade inegável de sua obra, mas porque um repórter teria supostamente conseguido revelar sua verdadeira identidade, algo misterioso desde que ela publicou o primeiro livro na Itália, em 1992. Claudio Gatti, do jornal italiano Il Sole 24 Ore, conduziu suas investigações a partir do rastreamento dos pagamentos cada vez mais polpudos feitos pela Edizione E/O à tradutora Anita Raja, antiga colaboradora da casa que publica Elena Ferrante por lá. Os métodos de Gatti foram repudiados publicamente pela editora – que não negou nem confirmou a ligação entre Anita e Elena –, e por muita gente que também viu na sanha pela busca da identidade uma peça irrelevante na trajetória da escritora e de sua obra.

Este também não é um apanhado (quase sempre chatíssimo) do mercado editorial brasileiro em 2016, ano em que o Brasil patinou muito feio em todas as áreas, e dentre elas a cultura não se mostrou diferente. A do livro rolou ladeira abaixo junto com a queda dos investimentos no setor, e o varejo conviveu com perdas reais em boa parte do período, levando editoras e livrarias a refazer contas e estratégias para manter o nariz acima da linha d’água. No final de 2016, algumas notícias davam conta de uma débil luz se desenhando, talvez quem sabe, no fim do túnel sombrio que deverá ser o ano de 2017. A conferir.

Este texto não é igualmente uma lista das perdas de grandes personagens do mundo literário, embora elas tenham sido muitas e sentidas. O ano começou com a morte, em fevereiro, do escritor, filósofo e semiólogo italiano Umberto Eco, um dos intelectuais mais importantes do nosso tempo, defensor ferrenho e apaixonado dos livros impressos, ensaísta prolífero e autor de romances celebrados como O nome da rosa e O pêndulo de Foucault. E terminou, no início de dezembro, com a partida do poeta e crítico Ferreira Gullar, aos 86 anos. O autor do essencial Poema Sujo tem uma dimensão que vai além da produção poética. Avança pela dramaturgia, pelos ensaios, pela crítica de arte, sem esquecer, claro, sua contundente participação política em momentos diversos da história brasileira. Nos últimos tempos, aliás, o escritor vinha sendo cobrado e bastante criticado por uma guinada mais conservadora, para muitos incompatível com as ideias defendidas pelo enérgico homem de esquerda do passado. Uma esquerda, é bom lembrar, que já não era a do presente do poeta.

Finalmente, antes que o leitor se canse do textão, estas linhas são para ressaltar que 2016 foi o ano em que a literatura galgou um novo patamar, e a ousadia foi referendada justamente pela mais vetusta e pomposa das instituições: a Academia Sueca. A entrega do Prêmio Nobel não para um escritor devidamente enquadrado como tal, mas para um compositor de indiscutíveis qualidades literárias, o músico Bob Dylan, jogou um benéfico balde de água fria sobre a velha, cansativa e inútil discussão sobre o que é ou não é literatura. Muitas vozes se levantaram para criticar o prêmio usando como justificativa a de que ele estaria usurpando o lugar da literatura “de fato”, hoje já tão vilipendiada, maltratada e ignorada. E que prêmios como o Nobel servem justamente para dar visibilidade e ajudar na divulgação de autores, facilitando traduções e vendas pelo mundo, o que é um fato, mas não totalmente verdadeiro, pelo menos no caso do Nobel. E especificamente no caso do Brasil.

Seria possível listar uma infinidade de premiados pela Academia Sueca que continuam solenemente ignorados pelos editores e leitores por aqui até hoje. Seja por incompetência ou cegueira editorial, seja pelos atributos literários não tão atraentes para o grande público, muitos nomes incensados pelo Nobel ficaram pelo caminho. Há exceções, evidentemente, como a bielorrussa Svetlana Aleksiévitch, Nobel de Literatura de 2015, que teve seus impressionantes e distintos relatos sobre a Rússia lançados por aqui este ano (Vozes de Tchernóbil, A guerra não tem rosto de mulher e O fim do homem soviético, todos pela Companhia das Letras), e que se tornou uma das grandes atrações da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), sucesso traduzido também em vendas.

É importante reconhecer ainda que, pelo menos até 2016, a Academia Sueca nunca primou exatamente pela ousadia na hora de escolher seus premiados (isso sem contar os gênios que nunca foram reconhecidos nesse panteão, como o argentino Jorge Luis Borges). Escritores, poetas, ensaístas ou dramaturgos laureados sempre se enquadraram numa perspectiva, digamos, mais tradicional, ainda que fossem considerados enfants terribles em seus territórios. Mesmo o prêmio de Svetlana, o primeiro Nobel concedido exclusivamente a uma obra jornalística, não pode ser considerado uma ousadia propriamente dita.

A pergunta que emerge: seria ousado então escolher um dos gigantes da canção americana, um nome mais que celebrado, ovacionado, para lá de reconhecido no cenário das artes mundiais? Sim, porque é ave fora do ninho, outsider, não carimbado oficialmente (até agora) com o selo literatura. Isso posto, deixemos de lado as idiossincrasias e reconheçamos que, de certo modo, o prêmio da Academia Sueca em 2016 poderá fazer muitíssimo bem, daqui por diante, a todo aquele que faz e vive de literatura. Pode ser um sinal, ainda que com uma definição meio borrada, de que os ilustríssimos jurados estariam dispostos a ampliar seus horizontes, abrir suas mentes, voltar os olhares para uma produção mais contemporânea, experimentadora.

De qualquer forma, pelo menos para o próprio homenageado a questão crucial (ser ou não ser) já foi respondida. No discurso escrito para ser lido na cerimônia de premiação, em Estocolmo (à qual ele não pode comparecer), o bardo que desde suas primeiras investidas musicais foi recebido com entusiasmo e admiração por ninguém menos que o poeta beat Allen Ginsberg, outro gigante das palavras, se manteve respeitoso e sinceramente agradecido. Ao mesmo tempo, foi cirúrgico em sua análise sobre a honraria conquistada, como se pode ver nos trechos do discurso traduzido e compartilhado pelo escritor Bráulio Tavares na ocasião. Este é um texto que agora se encerra com a sabedoria Dylan:

“Comecei a pensar em William Shakespeare, o grande nome da literatura. Pelo que sei, ele se considerava um dramaturgo. A ideia de que estava fazendo literatura não podia estar presente em sua mente. Suas palavras eram escritas para o palco. Eram palavras para serem ditas, não para serem lidas. Quando ele estava escrevendo Hamlet, tenho certeza de que estava pensando numa porção de outras coisas: ‘Quem são os atores ideais para estes papéis? Como a peça deve ser encenada? Quero mesmo ambientar esta história na Dinamarca?’ (…) Sou capaz de apostar que a última coisa presente na mente de Shakespeare seria a pergunta: ‘Isto que eu faço é literatura?’ (…) Mas, tal como Shakespeare, eu também vivo ocupado com a minha atividade criativa, e tenho que lidar com todos os aspectos práticos da vida. ‘Quem são os músicos ideais para tocar nesta canção? Estou gravando no estúdio mais adequado? Esta música está no tom certo?’ Algumas coisas não mudam nunca, mesmo em 400 anos. Não houve uma vez sequer que eu tivesse tempo de perguntar a mim mesmo: ‘Minhas canções são literatura?’. Assim, quero agradecer à Academia Sueca, tanto por ter tido tempo para considerar essa questão, quanto, em última análise, por ter nos concedido uma resposta tão bela.”

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