A tal da governabilidade

Colunistas

26.08.15

A pauta progressista que havia marcado a ascensão do PT ao poder tem sido varrida para baixo do tapete nos acordos parlamentares com evangélicos, católicos e aliados da bancada ruralista em um Congresso dominado pela ideia, tão bem defendida pelo filósofo Marcos Nobre, de que a tal da governabilidade depende de uma supermaioria parlamentar a partir da qual se pode ignorar as reivindicações das forças sociais. O problema está no fato de que, por mais que a localização dos três poderes no planalto central possa dar a falsa ilusão do contrário, não se faz política sem forças sociais. Já que a tarefa era imobilizar as forças de transformação, e já que o PT chegou ao poder se autoproclamando a única força de transformação social relevante na política brasileira – e cooptando as possíveis diferenças –, pareciam naquele momento inicial absolutamente irrelevantes os acordos com as forças religiosas. Nada mais falso.

A bancada religiosa, ecumênica quando se trata de barrar os avanços na pauta moral, vem crescendo desde a Constituinte de 1988 e responde à expansão da presença das denominações religiosas neopentecostais na sociedade brasileira. Os evangélicos pularam de 3,9 milhões no total da população brasileira em 1980 para 18 milhões em 2000 e 42 milhões em 2010, mais que dobrando a cada década. De uma cultura baseada na ideia de que o Brasil era a maior nação católica do mundo – e tolerante com as diferenças – emergiu um país marcado por disputas religiosas e pautado por um conservadorismo moral que invadiu a política.

O presidente da Câmara, Eduardo Cunha, cresceu – politica e economicamente – no rastro da união com a Assembleia de Deus, tanto e a tal ponto que agora a tal da governabilidade não passa mais pelo PMDB, mas pelo parlamentar que melhor representa os interesses religiosos, o que faz uma baita diferença. Classificada pelo filósofo Vladimir Safatle como “filho bastardo do lulismo”, a ascensão desse conservadorismo moral é resultado da necessidade de construir uma base aliada no Congresso que sistematicamente exige em troca o bloqueio de iniciativas como a descriminalização do aborto e  a criminalização da homofobia. As consequências desta política, no entanto, vão além das oportunidades perdidas no Congresso em direção ao aprimoramento democrático, como aponta Sonia Corrêa em sua defesa do direito ao aborto.

Este filho bastardo do PT atende hoje pelo nome de Eduardo Cunha, eleito presidente da Câmara a fim de tomar as rédeas da tal governabilidade. Não por ser do PMDB ou por ser apenas mais um fenômeno do peemedebismo que contamina a democracia brasileira e a impede de ser menos oligárquica e mais representativa, mas sobretudo por arrancar sua legitimidade de valores religiosos coerentes com uma linhagem conservadora com raízes fincadas nos EUA. Trata-se de barrar a desejada separação entre política e religião que já está em risco nos países europeus, mesmo naqueles em que a laicidade foi uma conquista fundamental.

(Edilson Rodrigues/Agência Senado)

Nesse sentido, Cunha é o primeiro e ousado passo em direção ao projeto de poder direto, sem mediações, que vem sendo gestado há anos em diferentes cultos evangélicos, mas não apenas neles. As forças católicas têm cada vez mais assumido publicamente suas preferências e vetos eleitorais. Se lembrarmos que foi a união entre a corte portuguesa e a igreja católica que levou à divisão do Brasil em capitanias hereditárias, podemos ter a triste sensação de que os interesses políticos que nos governam ainda são herdeiros da velha aliança entre os donos da terra e os senhores da fé.

Por fim, a crise política brasileira pode ser comparada com um grande bolo de aniversário, composto de muitas camadas, recheios e coberturas. A imagem é útil para pensar como pode ser fácil analisar a crosta mais superficial sem chegar a olhar mais de perto a podridão dentro do bolo. Se a movimentação política que se vê nas camadas deste bolo podre, servido diariamente pelo Congresso Nacional aos grandes jornais, é mais ou menos óbvia, é por esconder esse elemento fundamental no debate sobre governabilidade. Cunha, lamentavelmente, não é apenas mais um na longa trajetória de políticos do PMDB que foram avalistas da governabilidade na ainda mais longa transição democrática brasileira. É a cereja do bolo.

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