A tradução do indizível

Literatura

15.10.11

Perto do coração selvagem é um livro de estreia dupla: foi o primeiro romance de Clarice Lispector, lançado no Brasil em 1943, e sua primeira obra traduzida, publicada em Paris, em 1954. Na época da tradução, a autora já era consagrada pela crítica brasileira e já havia escrito outros dois romances: O lustre (1946) e Cidade sitiada (1949).

 

 

Capa de Santa Rosa para a primeira edição de Perto do coração selvagem, 1943

Na década de 1950, a editora francesa Plon, interessada em divulgar escritores nacionais e estrangeiros ainda não conhecidos no país, lançou a Coleção Roman, integrada por nomes como o belga Jacques Sternberg, o sueco Vilgot Sjöman, entre outros. Foi assim que o romance inaugural de Clarice Lispector saiu em Paris, sob o título de Près du coeur sauvage, em 1954, traduzido por Denise Moutonnier.

A capa para a Coleção Roman, que inclui o livro de Clarice, foi produzida por ninguém menos que o já à época famosíssimo artista plástico Henri Matisse, que não se restringiu à pintura ou à escultura, em que se celebrizou, mas também fez trabalhos de artes gráficas para editoras diversas. Desde 1930, quando, por problemas de saúde, o artista foi proibido de usar tinta a óleo, passou a desenvolver a técnica dos recortes de papel, os papiers collés, e a se dedicar mais às artes gráficas, em que não abriu mão da intensidade cromática que caracterizou sua obra. Certamente a capa da Coleção Roman foi de seus últimos trabalhos, pois Matisse morreria no mesmo ano. São suas ainda as ilustrações do Ulysses, de James Joyce (1935), e de Les fleurs du mal, de Baudelaire(1947).

 

 

Capa de Henri Matisse para Près du coeur sauvage, primeiro livro de Clarice a ser traduzido.
Paris, 1954

 

Diferentemente da edição brasileira, Près du coeur sauvage recebeu prefácio, escrito pelo jornalista mineiro Paulo Mendes Campos. Para introduzir a obra, o escritor reutilizou seu texto publicado no Diário Carioca, em 1950, primeiro perfil mais detalhado de Clarice a aparecer na imprensa. Conta o prefaciador que o título do livro foi inspirado numa frase de James Joyce, usada como epígrafe da obra: “Ele estava só. Estava abandonado, feliz, perto do selvagem coração da vida”.

Em setembro de 1955, o belga Hubert Juin, que se tornaria um dos críticos mais ativos da obra de Clarice na França, escreveu um ensaio para a revista Esprit sobre Près du coeur sauvage, em que destaca: “O que é justamente uma das qualidades mais espantosas do livro de Clarice Lispector, e que faz dele uma grande obra, é esta faculdade de dizer tudo o que pode ser desvendado pela linguagem, tornando presente e próximo tudo o que escapa ao poder das palavras”.

A tradução de Denise Moutonnier foi alvo de críticas severas de Clarice, pelo menos na primeira prova do livro. Indignada, a autora desabafa em carta de 10 de maio de 1954 às irmãs Elisa e Tânia Lispector: “[…] quando escrevo a palavra ‘porcaria’ ela traduz por ‘excrementos’, mesmo quando não é o caso. Sem falar em liberdades engraçadas que ela tomou. Eu escrevo: ‘a criada’ e ela traduz: ‘a criada preta’ – sendo que em nenhum pedaço do livro se fala em nenhum criado negro”.

No entanto, três anos depois da publicação do livro, a escritora percebeu que suas observações tinham sido aceitas pela editora e as falhas, corrigidas. Em carta a Pierre de Lescure, editor da Plon, Clarice elogia o trabalho de mademoiselle Moutonnier e afirma que a tradução está muito boa, e o estilo, sensível.

Nem assim o livro vendeu como se esperava. Apesar do bom desempenho da tradutora e da indiscutível qualidade do romance, Clarice Lispector recebeu um comunicado da Plon, em 1958, informando que mil exemplares de Près du coeur sauvage seriam destruídos para liberar espaço no estoque.

Evidentemente, não seria esse o destino das futuras traduções da escritora brasileira. Seus livros continuaram a ser traduzidos, com sucesso, para o francês e outros idiomas como o sueco, o inglês e até mesmo para o finlandês e o japonês, além do espanhol, língua para a qual, só na Espanha, há mais de vinte edições de suas obras. A familiaridade de Clarice com o idioma de Borges e a receptividade que teve na Argentina fizeram com que ela se sentisse uma “estrela de cinema” na Feria Internacional del Autor al Lector, em Buenos Aires, em 1976, quando autografou centenas de livros – lê-se nos Cadernos de Literatura Brasileira nº 17 e18: Clarice Lispector, publicados pelo Instituto Moreira Salles.

Perto do coração selvagem ganhou nova tradução na França, feita por Regina de Oliveira Machado e publicada pela Éditions des Femmes, em 1981. Mas Clarice não pôde compará-la com a anterior: morrera em 9 de dezembro de 1977.

, , , , ,