A utopia suja de Cláudio Assis

No cinema

22.06.12

Febre do rato, de Cláudio Assis, é um filme extemporâneo. Se do futuro ou do passado, ainda não dá para saber. O que vemos na tela, em imagens marcantes de um belíssimo preto e branco, é uma utopia suja, um rascunho de sociedade alternativa, uma cidade que fervilha à margem e nos escombros da Recife “oficial”.

http://www.youtube.com/watch?v=U4PALnbXVMU

Tudo gira em torno do poeta e agitador Zizo (o extraordinário Irandhir Santos), que mantém em sua casa uma pequena gráfica artesanal, na qual imprime o fanzine Febre do Rato. Os valores defendidos por Zizo em seus manifestos e poemas – o sexo livre, os prazeres ilícitos, a desobediência às normas sociais opressoras, a fraternidade dos excluídos – são, de alguma forma, praticados cotidianamente por ele e seus amigos, uma comunidade lúmpen que lembra o subproletariado romano retratado por Pasolini em seus primeiros filmes: pequenos traficantes, músicos amadores, travestis, desocupados, bêbados.

Aqui, num trecho de Accattone (1961), uma amostra do mundo duro de Pasolini, que só a música de Bach é capaz de aliviar:

http://www.youtube.com/watch?v=l6RgyQN3Xyc

Outro é o tom, quase dionisíaco, de Febre do rato. Em meio ao registro naturalista do dia a dia desse povo da margem, contam-se paralelamente duas histórias de amor: a paixão de Zizo por uma adolescente relutante (Nanda Costa) e o atribulado romance entre um coveiro (Matheus Nachtergaele) e um travesti (Tânia Granussi).

Recife alternativa

A grande força do filme, a meu ver, está na construção visual dessa Recife oculta, alternativa. Os espaços em que o protagonista e seus amigos se movem – galpões em ruínas, fábricas abandonadas, bares de beira de rio, terrenos baldios – são polimorfos e cambiantes como as relações sexuais e afetivas entre eles. O próprio ambiente em que Zizo vive – uma espécie de museu dos objetos descartados – é um misto de moradia, gráfica, biblioteca, oficina e depósito.

Nos lentos travellings sob as pontes do rio Capibaribe, nas tomadas verticais com câmera alta – uma figura de estilo frequente nos filmes de Cláudio Assis -, no apuro plástico geral, atinge-se, nos melhores momentos, uma beleza estranha e envolvente, a um passo do esteticismo.

Há excessos e desequilíbrios no filme – afinal, trata-se da “febre do rato”, que faz o indivíduo sair de controle -, mas é dessa desmesura (nos vários sentidos da palavra) que ele se alimenta e extrai sua força.

Se alguma coisa enfraquece o conjunto, por paradoxal que pareça, é o seu discurso poético verbal, um tanto prolixo, redundante, datado, a despeito do sabor e da beleza de inúmeras passagens do texto. Sente-se um ranço da poesia de mimeógrafo dos anos 70, do discurso contracultural de desafio ao “sistema” e à opressão, em abstrato.

Quando a turma de Zizo parte para o enfrentamento das forças da ordem – numa parada de 7 de setembro – algo parece girar em falso, como se os manifestantes não soubessem muito bem contra o que estavam se insurgindo. Resulta numa provocação um tanto pueril.

Erotismo perverso

Essa, para mim, é a parte esquecível do filme, embora talvez pretenda ser a mais “chocante”. O que fica na memória é a atitude quixotesca de Zizo, divulgando sua palavra rebelde por todos os meios artesanais possíveis: espalhando seu panfleto poético pelas ruas, bradando-os num megafone de seu carro escangalhado ou de um barco nos rios de Recife, pichando os muros da cidade ou discursando bêbado nos bares.

Há pelo menos uma cena antológica, de um erotismo perverso digno de Bataille ou de Buñuel: num bote, à noite, durante uma festa de São João, Zizo pede à ninfeta Eneida que o deixe vê-la urinar no rio, de cócoras na beira do barco. Aí está a poesia convulsiva de Cláudio Assis, e não nos depoimentos malcriados e ofensivos que ele costuma dar à imprensa e ao público dos festivais.

* Na imagem que ilustra o post: cena do filme Febre do rato.

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