A vida do Santos

Miscelânea

28.11.13

O trecho abaixo foi retirado do livro Botafogo – Entre o céu e o inferno (Ediouro) e foi cedido pelo autor para publicação no Blog do IMS como homenagem a Nilton Santos, a “Enciclopédia do Futebol” que morreu aos 88 anos na última quarta-feira, dia 27 de novembro.

Nilton Santos na época de Botafogo e em fotografia recente

Nilton Santos na época de Botafogo e em imagem recente

Não tive a ventura de ver Heleno de Freitas jogar. Já peguei Pirilo em seu lugar. Meu primeiro ídolo foi Nilton Santos, que era chamado apenas de Santos quando estreou no Botafogo, na temporada de 1948. Os ídolos da garotada do meu tempo geralmente eram os jogadores que sabiam marcar gols ou, então, evitá-los com muita dose de sorte e algum espalhafato. Nem atacante, nem goleiro, Nilton Santos, o ídolo improvável, impôs-se como um jogador singular, absolutamente fora-de-série, muito à frente do seu tempo, um craque de vanguarda, lato sensu: um zagueiro que, ao contrário dos demais, não se limitava a defender, aventurando-se com inusitada regularidade até à área adversária, para trocar passes, fazer lançamentos e arriscar perigosos chutes a gol. Foi com ele que nasceu o ala moderno: inexpugnável lá atrás e agressivo lá na frente. Exímio em qualquer posição, majestoso no trato com a bola e inteligente das travas da chuteira ao topete, não ganhou numa rifa o apelido de Enciclopédia do Futebol; nem foi obra de cupinchagem a sua consagração como o melhor lateral-esquerdo do mundo em todos os tempos, depois de ganhar as Copas do Mundo de 58 e 62.

Nenhum outro jogador, nem mesmo Heleno de Freitas e Garrincha, encarnou o espírito botafoguense com a perfeição, com a plenitude de Nilton Santos. Em parte porque nenhum outro vestiu tantas vezes a camisa do Botafogo. Foram ao todo 719 jogos, em 16 temporadas. Isto mesmo: 16 anos. Pois é, houve um tempo em que os jogadores de futebol não trocavam de clube como quem troca de carro, relógio, celular e namorada, logrando identificar-se mais profunda e sinceramente com seus times e estabelecendo com a torcida um vínculo, uma cumplicidade, hoje impensáveis. Nilton Santos fez mais do que vestir o uniforme alvinegro durante 16 anos. O Botafogo foi o único clube profissional de sua vida. Fidelidade igual nunca se viu.

Cresci, estudei e me iniciei no jornalismo assistindo às suas exibições, sempre de gala, no Botafogo e nas seleções carioca e brasileira. Quando ele foi o biografado do mês, no quinto número da revista Vida do Crack, em setembro de 1953, arrumei um jeito de comprar dois exemplares: um para recortar as fotos e montar um álbum, outro para guardar. Diante da resistência de minha mãe, que alegava já ter gastado comigo naquele mês uma pequena fortuna em gibis e ingressos de cinema, apelei para minha avó, que ao ouvir as palavras “vida do Santos” persignou-se, lascou um conselho (“Isto mesmo, meu filho, é melhor você ler sobre a vida dos santos do que histórias em quadrinhos”)?e depositou na minha mão o dobro do que eu lhe mendigara.

O álbum há muito se perdeu, mas o segundo exemplar da Vida do Crack está comigo até hoje, em perfeito estado de conservação, guardado como se fosse a Bíblia de Mongúncia. Depois então que o próprio craque o autografou, seu valor tornou-se rigorosamente inestimável. “Se eu fosse você, não o trocaria nem por um desenho do Michelangelo”, me aconselhou João Moreira Salles. Falava a sério. E ele nem viu a Enciclopédia jogar ao vivo.

* Sergio Augusto é jornalista.

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