A violência reduzida a espasmo

Colunistas

16.07.14

Arkadi Zaides em Archive. © Christophe Raynaud de Lage

Quando, na semana passada, a tensão entre Israel e o Hamas já tomava o caminho de uma escalada sem perspectivas de trégua, um homem de barba, expressão melancólica de eremita e corpo de faquir, entrou no palco da Cartuxa de Avignon, durante o festival de teatro, e se dirigiu ao público nos seguintes termos: “Meu nome é Arkadi Zaides. Vivo em Tel Aviv. As imagens que vocês vão ver fazem parte do arquivo do centro de informação israelense pelos Direitos Humanos nos territórios ocupados (B’Tselem). Voluntários palestinos que vivem na Cisjordânia receberam câmeras de vídeo. As imagens que vocês vão ver são cenas que eles gravaram no dia a dia da ocupação. Todos os que aparecem nos vídeos são judeus, como eu.”

Em seguida, Zaides liga o projetor e se aproxima da tela, com o controle remoto na mão. Junto com o público, passa a assistir às imagens de colonos encapuzados, jogando pedras na direção da câmera; policiais removendo colonos que, depois de banidos de seus assentamentos, voltam para atacar palestinos; um menino bêbado sendo arrastado na rua, pelo pai; crianças judias atirando pedras na casa de palestinos etc. Pouco a pouco, e a princípio com alguma hesitação, Zaides começa a reproduzir esses gestos.

Em Archive, o coreógrafo nascido na Bielorrússia, em 1979, e que vive em Israel desde 1990 (quando a mãe decidiu dar aos filhos oportunidades mais interessantes do que uma vida nos arredores de Tchernobil), imita os movimentos das pessoas na tela. São gestos bruscos em cenas de violência, mas a imitação reproduz apenas um recorte mecânico desses movimentos fora de contexto. Zaides faz a imagem no vídeo ir para frente e para trás. E seu próprio corpo imita o movimento dos corpos indo e vindo nas imagens, em looping etc.

Aos poucos, a imitação começa a configurar um balé. Por assim dizer. É uma coreografia dura e seca, sem música. Zaides apenas imita as posturas e os movimentos daquela gente e, assim, descontextualizando os gestos, esvaziando-os dos seus objetivos e expondo sua “essência” mecânica e repetitiva, ele ao mesmo tempo isola e ressalta o horror e a violência aos quais eles servem (ou serviam). Ao mesmo tempo em que os priva de propósito, de utilidade e de continuidade, Zaides lhes insufla um sentido crítico e distanciado. É só o começo.

No mesmo dia, um texto contundente do escritor israelense David Grossman aparece no jornal Libération com o título: “A direita não venceu apenas a esquerda, ela venceu Israel”. Em reação à nova guerra detonada pela morte de três crianças judias e de um menino palestino queimado por um grupo judeu de extrema direita, Grossman denuncia a impostura do governo Netanyahu, que abandonou todos os esforços de paz, justificando a violência contra a violência e invertendo, assim, a própria razão de ser do Estado de Israel.

“É revoltante a ideia de que a enorme potência militar de Israel não seja capaz de lhe insuflar coragem para vencer seu medo e seu desespero existenciais e dar um passo decisivo na direção da paz. A ideia essencial na origem da criação do Estado de Israel não era que o povo judeu retornaria ao seu lar e que aí não seria mais vítima de ninguém? Que nunca mais ficaríamos paralisados e sujeitos a forças superiores às nossas? (…) Pois vejam o espetáculo que apresentamos: o Estado mais forte da região, uma potência em escala regional, gozando do apoio quase incompreensível dos Estados Unidos e do compromisso da Alemanha, da Inglaterra e da França, ainda se considera, no fundo, uma vítima abandonada por todos. E continua se conduzindo como vítima: de seus medos, reais ou imaginários, dos horrores de sua história, dos erros de seus vizinhos e de seus inimigos”, escreve Grossman.

A dança documental de Arkadi Zaides é uma maneira inusitada e desestabilizadora de reinvestir o corpo de um sentido político, não pela simples condenação da violência, que parece ter sido paralisada e anulada pela própria violência, mas pela reapropriação e inversão desses gestos descontextualizados. Num mundo de oportunismos e imposturas, onde a extrema direita na Europa repete sem nenhum pudor o discurso antes usado pela esquerda (a favor do Estado laico e dos operários, por exemplo) e onde nenhum discurso crítico parece capaz de restabelecer o bom senso contra a reapropriação espúria dos sentidos, Zaides também recorre a um processo de reapropriação, deslocamento e esvaziamento, só que para reduzir a violência a espasmo.

A coreografia convulsiva que resulta da repetição exaustiva desses movimentos reproduzidos da tela testa os limites do espectador. Ele já não pode assistir ao gesto violento com a impunidade da distância. Já não pode se compungir por meio da boa consciência politicamente correta. A própria visão do movimento passa a ser insuportável.

Na primeira pausa, quando finalmente volta o silêncio depois de uma longa sequência na qual o movimento convulsivo de Zaides se faz acompanhar pelos xingamentos imitados dos vídeos, que ele também repete à exaustão, um punhado de espectadores abandona a sala, não sem antes deixar escapar um suspiro de horror e angústia, como se estivessem a ponto de explodir. A política da coreografia de Zaides é uma forma de voltar a sensibilizá-los para o que, de tanto ver, aprendemos a condenar, no conforto das nossas vidas, sem nos sentirmos diretamente concernidos. E é a prova de que, para além da impotência das palavras, das imagens e dos discursos, uma dança pode ser efetivamente política, sem precisar dizer nada além dos seus movimentos.

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