A voz humana dos poemas

Música

02.02.16

Ouço a voz cintilante de Stella Doufexis e lembro-me de seu rosto nas fotos: uma bela mulher de meia-idade, dona de um longo e elegante pescoço – como nos retratos pintados por Modigliani – e de cujo perfil bem talhado destaca-se o nariz, tão expressivo quanto, talvez tristes, seus olhos.

Stella Doufexis

A ideia era abrir este quinto programa da série A voz humana – “Poema cantado (ou quase)” – com alguma homenagem à Grécia, berço da lírica ocidental num tempo em que poesia e música eram um corpo indivisível. Porém, tentava-me, igualmente, o desejo de partir da modernidade. Baudelaire seria perfeito. Mas o simbolismo francês me acenava com Mallarmé, outro nome decisivo. E havia a Grécia. Resolvi conjugar vagamente tais horizontes com o canto de Doufexis, a alemã de origem grega que gravara poemas de Mallarmé musicados por Debussy, que também musicara versos do autor de As flores do mal.

A homenagem, no entanto, acabou tristemente sendo à própria cantora, que faleceu no último dia 15 de dezembro, aos 47 anos. O nome da mezzo-soprano não brilhava entre os mais conhecidos do panorama internacional, muito embora exibisse uma carreira sólida e reconhecida, sobretudo na Alemanha. Tendo sido aluna do célebre Dietrich Fischer-Dieskau, chegou a ser considerada pela crítica especializada como uma das melhores intérpretes do repertório do século XIX para voz e piano.

O lied e a chanson estavam entre suas especialidades, destacando-se então seu belo timbre e sua capacidade expressiva, perfeitamente ajustados aos versos em francês, como se pode confirmar ouvindo sua gravação – acompanhada ao piano por Daniel Heide – dos “Trois poèmes”de Stéphane Mallarmé. Destes, selecionei o primeiro, “Soupir”. Debussy dá vida aos aspectos temáticos, acompanhando as inflexões afetivas das imagens, mas realça igualmente certas sutilezas formais, como a trama de elementos fonéticos, de modo que o canto recorre tanto ao recitativo quanto à fluidez melódica. Há, porém, uma franca liberdade musical, reconhecível no modo como o compositor valeu-se da melancolia outonal dos versos de Mallarmé sem se conformar a algo como uma imitação direta das imagens.

Jean Cocteau

Tributo pago aos gregos e ao berço da modernidade num só lance de voz (ainda quanto a Doufexis, registro que a OSESP, para sua temporada de 2016, programara um recital em que a cantora se apresentaria com o pianista brasileiro Paulo Álvares no dia 7 de agosto), segui para as vanguardas das primeiras décadas do século XX, indo encontrar, no entanto, um exemplo acabado do quanto os poetas modernos nunca perderam de vista a Grécia clássica: Jean Cocteau. Mas em vez de alusões a deuses da mitologia greco-latina, escolhi um ciclo de três poemas tão terrenos quanto líricos: “Le Nègre”, “Locutions” e “Souvenirs d’Enfance”. A música é de Arthur Honegger, que integrava um grupo de jovens compositores franceses conhecido como Les six (Os seis), do qual faziam parte Darius Milhaud, Francis Poulenc, Georges Auric, Germaine Tailleferre e Louis Durey. No programa, ouviremos a gravação da mezzo-soprano suíssa Brigitte Balleys. O colorido de sua voz – acostumada à delicadeza do lied e à dramaticidade das grandes óperas – casa-se perfeitamente com a modernidade de Honegger e Cocteau. Além disso, Balleys é presidente da Melodies passagères, associação dedicada a trabalhar com aproximações entre música e literatura. Se sua voz bastaria para que figurasse aqui, sua atuação para além do canto não deixa de ser algo a se considerar num programa como este. Uma última palavra sobre Cocteau: vale lembrar que o nome A voz humana vem de sua peça La voie humaine.

Deixando o território da língua francesa, retornamos ao século XIX sem nos afastarmos da mais radical modernidade. Adentramos então o território das maravilhas com os versos de “Jabberwocky”, o célebre poema de Lewis Carrol que aparece no seu Alice através do espelho e o que ela encontrou por lá, ou ainda, Alice no país dos espelhos, conforme traduções para o português do Brasil. Os versos compõem uma peça inteiramente nonsense e foi brilhantemente traduzida por Augusto de Campos sob o título “Jaguadarte”. Arrigo Barnabé atreveu-se a musicar sua estrofe de abertura:

Era briluz. As lesmolisas touvas
roldavam e relviam nos gramilvos.
Estavam mimsicais as pintalouvas,
e os momirratos davam grilvos.

O belo resultado aparece no canto de pássaro da “pintalouva” Tetê Espíndola, cuja voz agudíssima realça do poema o humour, o frescor, a elegância selvagem. O canto de Tetê é ao mesmo tempo líquido, aéreo e próximo da relva. Tem aromas e cores. Mas nada soa naturalista ou descritivo. Ao contrário, levados pela voz, estamos numa outra natureza.

A modernidade em língua espanhola chega com “Epístola a los transeuntes”, versos do grande poeta peruano César Vallejo musicados por Diamanda Galás, cantora, compositora e instrumentista americana, filha de gregos. Mas a Grécia de Galás não poderia ser menos apolínea. Seu canto é escuro, atormentado, áspero, doloroso. As imagens perturbadoras, violentas e lúgubres de Vallejo encontram na voz de Galás um instrumento que as traduz perfeitamente no espírito e na rítmica.

Segue-se um clássico brasileiro: “Soneto de separação”, poema de Vinicius de Moraes musicado por Tom Jobim. Trata-se de uma gravação caseira, na qual Vinicius lê o poema e, adiante, o maestro canta ao piano. Poderíamos dizer que são vozes míticas, porque nelas ecoam toda a história da canção popular brasileira. E, retornando ao início do programa, lembremos que Tom e Vinicius tornaram-se parceiros quando compuseram as canções de Orfeu da Conceição, musical em que o mito grego de Orfeu (outra vez Cocteau) é revivido numa favela carioca em pleno carnaval.

Voltamos à língua francesa com a “Chanson des sardinières”, de Jacques Prévert, poema lido pelo próprio poeta numa gravação de 1953, descoberta há pouco tempo. O acompanhamento do violão sublinha a sintaxe e a imagética simples dos versos mas também o universo ordinário que retratam. A musicalidade dá-se igualmente pelas repetições de determinadas passagens do poema, como se as imagens e a voz de Prévert sugerissem um mundo sem saída e, ao mesmo tempo, procurassem uma saída para o cotidiano penoso das “sardinières” em luta pela sobrevivência.

William Burroughs

Não poderia faltar esta outra Grécia: os Estados Unidos. E poucas duplas seriam tão americanas quanto Jack Kerouace William Burroughs. O tema também não poderia ser mais americano: “Old Western Movies”. O poema de Kerouac é lido por Burroughs, cuja voz granulada parece trazer consigo a marginalidade das biografias e das escrita dos dois escritores e de seus companheiros de estrada. Burroughs alonga certas sílabas, encolhe outras, controla os volumes da emissão, manipula a voz sem sair absolutamente do universo da fala, de sua naturalidade despida e crua. Não se trata de coloquialidade fingida nem de estetização disfarçada. Seria possível dizer que é uma fala falada: voz criada para a escrita, sendo esta uma aproximação com o grau zero da fala ela mesma. Um jogo, portanto, no qual tudo está em movimento, quando vida e escrita eroticamente se atritam.

Em tudo contrastante com “Old Western Movies” é “No sorriso louco das mães”, versos do português Herberto Helder, recitados pelo poeta. Também não se trata de poema musicado, mas de leitura, aqui acompanhada pela música de Francisco Ribeiro. A introdução prepara-nos para a chegada da voz e então é como se caíssemos num abismo, porque é de lá que parece vir a voz de Herberto, movendo-se rigorosa e implacável, violenta e quente por entre as imagens excessivas dos versos. Mas se aqui não se procura a naturalidade, ou o realismo, da fala (como no caso de Burroughs), tampouco há traços de artifício numa atmosfera em que tudo é intensamente irrealista e que, após ela, tudo silencia:

No sorriso louco das mães batem as leves
gotas de chuva. Nas amadas
caras loucas batem e batem
os dedos amarelos das candeias.
Que balouçam. Que são puras.
Gotas e candeias puras. E as mães
aproximam-se soprando os dedos frios.
Seu corpo move-se pelo meio dos ossos filiais, pelos tendões
e órgãos mergulhados,
e as calmas mães intrínsecas sentam-se
na cabeças filiais.
Sentam-se, e estão ali num silêncio demorado e apressado,
vendo tudo,
e queimando as imagens, alimentando as imagens,
enquanto o amor é cada vez mais forte.
E bate-lhes nas caras, o amor leve.
O amor feroz.
E as mães são cada vez mais belas.
Pensam os filhos que elas levitam.
Flores violentas batem nas suas pálpebras.
Elas respiram ao alto e em baixo. São
E a sua cara está no meio das gotas particulares
da chuva,
em volta das candeias. No contínuo
escorrer dos filhos.
As mães são as mais altas coisas
que os filhos criam, porque se colocam
na combustão dos filhos, porque
os filhos estão como invasores dentes-de-leão
no terreno das mães.
E as mães são poços de petróleo nas palavras dos filhos,
e atiram-se, através deles, como jactos
para fora da terra.
E os filhos mergulham em escafandros no interior
de muitas águas,
e trazem as mães como polvos embrulhados nas mãos
e na agudeza de toda a sua vida.
E o filho senta-se com a sua mãe à cabeceira da mesa,
e através dele a mãe mexe aqui e ali,
nas chávenas e nos garfos.
E através da mãe o filho pensa
que nenhuma morte é possível e as águas
estão ligadas entre si
por meio da mão dele que toca a cara louca
da mãe que toca a mão pressentida do filho.
E por dentro do amor, até somente ser possível
amar tudo,
e ser possível tudo ser reencontrado por dentro do amor.

NOTA DA REDAÇÃO: Parceria da Rádio Batuta com a MEC FM, A voz humana – Poema cantado (ou quase), quinto programa da série idealizada e apresentada por Eucanaã Ferraz, vai ao ar à meia-noite desta terça-feira (02/02) e, a partir de então, poderá ser ouvida a qualquer momento na Rádio Batuta.

, , , ,