Abba! Adonai!

Correspondência

10.03.11

Oi Daniel,

Absolutamente não. Surfe no Havaí é um filme que em inglês se chama North Shore, um clássico das ondas, ao lado de gigantes como Under the Boardwalk e, como você bem mencionou, o Point Break. Não é bem um filme de ação (no mesmo sentido que Caçadores não é um filme de surfe), mas tem todo o éthos desse tipo de cinema que estamos falando, então vale. É a história de um surfista do Arizona, acostumado a competir em piscinões artificiais. Ele ganha um campeonato e, como prêmio, vai ao Havaí, onde se apaixona, amadurece e cumpre seu destino.

O moleque é recebido com desconfiança pelos nativos, que o chamam de “haole”, dialeto local para “novato”. Quem livra a barra dele é o Tartaruga, um aprendiz de prancheiro que de quebra o apresenta a um velho mestre surfista, seu futuro mentor. O velho está escandalizado pela comercialização do esporte, vive numa cabana fazendo umas poucas pranchas por ano, e se dedica ao chamado “soul surfing”, onde cada onda é um “poema dos mares”. Acho que o moleque se apaixona pela irmã de um dos nativos, e o velho (que é respeitado) intercede, enfim.

O filme culmina num campeonato, com o haole enfrentando a nata do surfe mundial, diante de todo o Havaí. Se ganhar, leva a menina, salva a loja do velho, renova a amizade com o Tartaruga e se prova digno daquelas ondas, aos olhos dos locais. O velho não acredita em campeonatos, mas decide que vai ajudá-lo, não lembro bem por quê. A cada estágio do treino, eles surfam com uma prancha diferente, mas sempre pranchões, porque o velho não acredita em pranchas de bico fino. Só no último estágio é que o haole pode pegar a única prancha de bico fino que o velho fez e, enfim, você entendeu.

Tenho em VHS, gravado da Globo (“O mar não está para peixe”, diz o anúncio), posso levar na semana que vem, a gente faz um churrasco e chama os amigos para assistir. Aliás, saiu Excalibur em blu ray, hein. Vou ver se consigo levar na viagem. Sei que não é um filme de ação, mas eu acho uma obra-prima, sem ironia. O livro tem quase mil páginas, é impossível de ser levado ao cinema, mas de algum jeito o Boorman captou a gravidade da história e soube contá-la sem concessões nem gracejos para a platéia.

Você assistiu recentemente? Passava como um filme de fantasia, lendas do rei Artur, uma dessas jóias da sessão da tarde onde havia, pasme, nudez frontal e climinha Sexta Sexy. Mas lembro nitidamente da sensação de que faltava alguma peça para entender o filme, como se por trás de toda a austeridade houvesse um Tema Sério que estava além da minha compreensão. Pode reparar: os personagens falam o tempo todo como se omitissem algo do espectador, há uma cumplicidade pressuposta, e eu tinha certeza de que estavam me escondendo alguma coisa sobre a vida adulta.

Acho que o único filme que causa algo parecido é o De olhos bem fechados. Nunca vou entender como foi tão malhado, defendo até o fim. E é a mesma coisa: a impressão de uma familiaridade que não se resolve, um exagero proposital na reverência, não sei bem explicar. Em ambos os casos, tem alguma coisa que funciona ali. Não vi o filme das mulheres na caverna, mas entendo a afinidade, sem brincadeira.

Em 1998, eu fiz duas coisas das quais tenho muito orgulho, e que estão integralmente ligadas ao assunto: aulas de surfe e um curso sobre Excalibur, com um professor de história que analisava os filmes parando de cena em cena. Eu estava no primeiro colegial, fazendo aula particular de trigonometria. Era uma sala com umas mesas grandes, e dois professores iam passando exercícios para um grupo de seis, oito alunos. Cada aula durava três horas, então acabei ficando bem chapa dos professores. Eles que organizavam os cursos, entre os amigos, e eu fui algumas vezes. Assisti Excalibur, Sacrifício e Blade Runner, acho.

Excalibur foi justo o último que vi lá. Os professores eram excelentes pessoas, mas ligados em esoterismo rosacruciano, então a discussão patinava muito ali. Não que eles fossem malucos, pelo contrário. Eram uns sujeitos estudiosos, sérios, mas foi demais para o meu comunismo. Eu também era impressionável, e o professor vinha com uns diagramas tirados do Joseph Campbell, como se cada objeto de cena tivesse um significado deliberado. Mesmo sabendo que ele estava exagerando, o problema com o filme era o mesmo que o meu: algo estava por trás do que estava sendo dito e mostrado, o tempo todo. Foi uma vitória pessoal muito importante. Isso e surfar.

Depois do episódio, associei o Campbell ao conluio místico internacional e nunca mais li. Quem recomendou que eu tentasse de novo foi justo o Galindo, por conta de um livro chamado A skeleton key, sobre o Finnegans Wake. É um baita livro, uma análise passo a passo, com vários acertos que o próprio Joyce confirmaria indiretamente em cartas. Com o detalhe de que foi escrito em 1944, poucos anos depois do original, e com pouquíssimo aparato crítico à disposição. Nesse departamento, convém sempre confiar nas indicações do Galindo.

A tradução do Ulysses está andando bem. Ele e o Paulo Henriques já fecharam mais de dez capítulos. Agora vou ler, dar pitacos e devolver. Eles decidem o texto final, claro, todavia pretendo bater o pé em diversas questões impertinentes. Mas sério, estou ansioso pra cacete, e o livro sai só em janeiro, vai ser dureza. Você acompanhou o caminho todo que a tradução fez até a gente fechar, uma sequência de coincidências e sortes, e fiquei feliz da vida que tenha dado certo. O Galindo passou anos trabalhando nisso, entre todas as revisões, e há muito tempo que falamos dessa edição. Misto de alívio e pânico agora que começamos de fato.

É uma tradução impressionante, você vai ver. Ele conhece o livro de cima para baixo, sabe como o texto se amarra e onde está a graça. Como no Excalibur, você fica em dúvida o tempo todo se foi caso pensado ou intuição e ouvido. Quando sugeri uma mudança num abre de capítulo, e ele gentilmente explicou que a frase precisava começar com aquela letra especificamente. Anos de trabalho naquilo e você nem percebe. Dura a vida de tradutor.

Olha só um trechinho, sem autorização:

“Quando eis que surgiu sobre eles grande esplendor e contemplaram a ascensão até aos céus da carruagem em que Ele estava. E contemplaram-nO na carruagem, trajando a glória do esplendor, vestido como o sol, belo como a lua e tão formidável que, apavorados, não ousavam olhar direto sobre Ele. E veio dos céus uma voz, que chamava: Elias! Elias! e ele respondeu com potente brado: Abba! Adonai! E eles O contemplaram, Ele próprio, ben Bloom Elias, por entre nuvens de anjos ascender à glória do esplendor em um ângulo de quarenta e cinco graus por cima do bar do Donohoe na Little Green street que nem uma pedrada de estilingue.”

Ok? Ok.

Abraços,

André.

PS. Também acho Apocalypto um grande filme de ação, coisa de gênio. E parece que o Mel Gibson vai bancar mesmo o filme de vikings, embora não esteja no seu melhor momento com o público. Força, Mel.

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