Alegorias da desesperança

Literatura

07.04.15

Ano passado, estreou nos cinemas brasileiros Expresso do amanhã, primeiro filme falado em inglês do sul-coreano Bong Joon-Ho (O hospedeiroMother). Joon-Ho faz parte da excelente geração de cineastas coreanos que tem conquistado o tênue equilíbrio entre sucesso de crítica e público (que inclui nomes como Jee-Woon Kim, de Eu vi o diabo, e Chan-Wook Park, de Oldboy). Ao contrário de seus colegas, no entanto, foi o único que não se deu mal ao dar os primeiros passos no cinema hollywoodiano. O expresso do amanhã, que traz nomes como Ed Harris e Tilda Swinton no elenco, obteve ampla apreciação crítica, algo raríssimo para um filme de ação. O que pouca gente sabe, talvez, é que se trata de uma adaptação de uma graphic novel francesa dos anos 1980: O perfuraneve, de Jacques Lob, Benjamin Legrand e Jean-Marc Rochette, quadrinhos que receberam sua primeira edição brasileira agora, pela Aleph.

Páginas de O perfuraneve (Divulgação/Aleph)

O filme (e a graphic novel) mostra a Terra devastada por uma catástrofe climática. Nosso mundo desenvolveu uma permanente temperatura inóspita, as cidades foram tomadas pela pior nevasca imaginável, e o que restou da humanidade se encontra presa num longo e moderno trem em movimento perpétuo ao redor do globo, o tal “perfuraneve” do título. Como estamos falando de seres humanos, a sociedade reconstruída dentro dos vagões não é a filial do paraíso. Pelo contrário: o Perfuraneve se organiza de forma extremamente estratificada. Nos vagões do fundo, a massa animalizada de pobres, que comem a pior comida, sofrem com doenças e superlotação. A situação melhora quanto mais se avança no trem: ricos comem sushi (no filme), coelhos criados num vagão (na HQ), desfrutam de privacidade, festas e promiscuidade.

O sexo está exposto de maneiras muito diferentes no filme e nos quadrinhos, mas não vale a pena se deter em todos os pontos que divergem entre matéria-prima e adaptação. Estamos diante de dois animais tão diferentes que compará-los lado a lado é perda de tempo. A premissa é a mesma, as abordagens são outras. E, se o filme pode ser criticado pela esquematização, pela falta de nuances, o mesmo não pode ser dito da HQ. A força motriz do filme é a revolta dos pobres moradores dos vagões do fundo contra os vilões que detém o capital. Já a narrativa da graphic novel é posta em movimento a partir de uma personagem, digamos, da “classe média bem intencionada”, que demonstra interesse nos “fundistas” e é engajada em movimentos sociais.

O risco de parecer uma metáfora óbvia – reducionista, limitada – é grande em qualquer ficção que se constrói em torno de uma alegoria. Uma das principais acusações que The Buried Giant, novo romance de Kazuo Ishiguro, recebeu, é justamente essa: você “entende” a metáfora e o livro se esgota. O trunfo de O perfuraneve é o de nunca parecer óbvio, de nunca dar indicações do que ocorrerá a seguir. A trama da graphic novel se estende ainda por duas outras histórias escritas posteriormente (em 1999 e 2000) e conectadas à primeira, que serviu de base para o filme, cada uma introduzindo novos elementos. Há, ainda, uma diferença de traços (decorrente, claro, do fato de serem desenhadas por artistas diferentes) entre a primeira história e as duas últimas; enquanto a primeira tem um preto e branco de linhas rígidas, que parece vir de um estilo mais tradicional, as duas últimas apresentam mais áreas cinzentas, mais efeitos de esfumaçamento.

A sensação de leitura é de uma desesperança crescente. A humanidade começa condenada, e cada tentativa de fuga, de revolução, vai sendo frustrada. Pensar diferente, sonhar com outra forma de organização social, é algo a ser combatido. O cientista político Francis Fukuyama se tornou uma celebridade nos anos 1990 por difundir o termo “fim da história”, a ideia de que, após a queda do muro de Berlim e o fim da Guerra Fria, acabaram as ideologias e o mundo inteiro se encaminha para uma democracia capitalista como único modelo possível. Uma das principais metáforas (da HQ e do filme) é a de uma Máquina Sagrada responsável pelo movimento do trem, localizada no inalcançável primeiro vagão. Trata-se do símbolo mais melancólico de todos: a ideia de que a desigualdade social e a crueldade intrínseca a ela é algo eterno, sagrado, característica imanente ao ser humano. É, em resumo, inescapável. O motor continuará girando, a sociedade seguirá em seu trajeto circular, tudo continuará igual: os moradores do fundo explorados pelos moradores da frente. E, se aceitarmos isso, não nos resta opção senão ver o mundo como essa gigante paisagem branca, coberta de neve, inabitável.

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