O crítico de cinema André Bazin

O crítico de cinema André Bazin

André Bazin: alma do cinema, cinema da alma

No cinema

23.05.14

Se o papel do crítico de cinema é aprimorar o olhar, aguçar a sensibilidade e incitar a inteligência do espectador, é provável que o maior de todos tenha sido o francês André Bazin (1918-58), fundador dos Cahiers du Cinéma e pai espiritual da geração de críticos-cineastas que viriam a fazer a Nouvelle Vague (Truffaut, Godard, Rohmer, Chabrol e companhia).

Por isso, é um acontecimento de grande importância o lançamento de uma nova edição – acrescida de nove textos inéditos em português – da obra-síntese de Bazin, O que é o cinema?, que estava fora de catálogo há muitos anos. Para se ter uma ideia, um exemplar da edição antiga (O cinema, Brasiliense, 1991) custa nos sebos entre R$ 130 e R$ 275.

No novo livro (Cosac Naify, 416 páginas, R$ 49,90), artigos luminosos sobre atores como Jean Gabin e Humphrey Bogart e filmes como Sedução da carne (Visconti) e Os boas-vidas (Fellini) vêm se juntar aos célebres ensaios que fundamentam a visão de cinema do autor, como “Ontologia da imagem fotográfica”, “Montagem proibida” e “Por um cinema impuro”.

Janela para a vida

Na visão de Bazin, que muitos qualificam de idealista e até metafísica, a tela é uma janela para a vida, o cinema é uma revelação do mundo para o homem, ou antes, do homem para o próprio homem. Daí sua resistência à montagem, que fragmenta o real e induz o espectador a uma leitura unidirecional do mundo, e sua defesa da profundidade de campo e do plano-sequência, que dariam ao olhar a liberdade de perscrutar o real em sua pulsante e contraditória imanência.

Profundamente francês em sua erudição filosófica e literária, em sua curiosidade infinita e em seu gosto pelo jogo das ideias, Bazin era também um escritor de primeira linha, com uma prosa cristalina, fluente, plena de humor e sagacidade. Como definiu Truffaut, “Bazin era a lógica em ação, um homem de razão pura, um dialético maravilhoso”.

Retórica sedutora, amplitude de espírito, clareza de exposição, tudo isso faz com que o texto de Bazin sempre nos ilumine e enriqueça, mesmo que eventualmente não concordemos com ele. Um caso clássico é o da sua resistência a Hitchcock, ponto fulcral de divergência entre ele e seus discípulos dos Cahiers, em especial Truffaut, Chabrol e Rohmer. Nada mais coerente, entretanto: como harmonizar com a visão realista radical de Bazin o cinema essencialmente de montagem e manipulação de Hitchcock?

Na nova edição de O que é o cinema?, que mantém a ótima tradução de Elolisa Araújo Ribeiro, acrescentou-se também, além dos inéditos do autor, o esclarecedor ensaio de Ismail Xavier “Bazin no Brasil”, sobre seu rico diálogo e sua influência duradoura sobre críticos, cineastas e cinéfilos brasileiros.

Aqui, Truffaut, que foi praticamente um filho adotivo de Bazin, fala sobre o mestre e amigo numa entrevista de televisão (infelizmente, sem legendas), em 1983:

 

Revista de Cinema

Outro lançamento de enorme importância para a cultura cinematográfica brasileira é a antologia da Revista de Cinema, publicada em dois volumes pela editora Azougue. Organizada pelos críticos Marcelo Miranda e Rafael Ciccarini, a coletânea reúne textos publicados na revista nas duas fases da sua existência (1954-57 e 1961-64).

A Revista de Cinema foi a principal publicação do gênero no Brasil em sua época e tornou-se ponto de referência nacional e até internacional. Editada em Belo Horizonte, onde surgiu como um desdobramento do Centro de Estudos Cinematográficos (CEC), a revista trazia artigos da nata da crítica de todo o país, como os paulistas Paulo Emilio Salles Gomes e Francisco de Almeida Salles, os cariocas Alex Viany e Ely Azeredo e o gaúcho Enéas de Souza, além de mineiros como Cyro Siqueira (um dos fundadores do CEC, morto recentemente) e Mauricio Gomes Leite. Ainda muito jovens, estrearam na publicação futuros escritores de renome, como Silviano Santiago e Fábio Lucas.

Pelas páginas da Revista de Cinema foram esmiuçados e discutidos movimentos como o Neorrealismo italiano, a Nouvelle Vague francesa e o nascente Cinema Novo brasileiro. Autores como Rosselini e Visconti, John Huston e Antonioni. Gêneros como o western e o musical, policial e o documentário. Mas, sobretudo, discutiam-se ideias: os limites do realismo, as pressões do comércio, o erotismo, as relações do cinema com a música, com a pintura, com a literatura.

Muito desse pensamento vivo e coletivo está recolhido nos dois volumes dessa antologia preparada com critério e carinho por dois herdeiros diretos da militância crítica da Revista.

Na sala escura

Por fim, já que tirei o dia para falar de livros, cabe destacar o encantador Na sala escura – A arte de sonhar com os olhos abertos (Penalux 224 páginas, R$ 40), com críticas, artigos e ensaios do escritor e jornalista Chico Lopes.

Durante quase vinte anos, Chico Lopes foi programador e apresentador do cineclube do Instituto Moreira Salles em Poços de Caldas. Ele se define modestamente como um cinéfilo autodidata, mas que ninguém se engane: trata-se de um tremendo crítico, com uma visão ao mesmo tempo arguta e desprovida de preconceitos, culta e despida de qualquer ranço acadêmico.

Escrevendo em primeira pessoa, em tom de conversa informal, Chico, como quem não quer nada, destrincha a obra de Hitchcock a partir de ângulos inusuais, mergulha no cinema vertiginoso de David Lynch a partir de uma leitura atenta de Veludo azul, defende com ardor suas paixões pessoais – como o Nosferatu de Herzog, considerado por ele “o mais belo dos filmes de vampiro” e “talvez o remake mais bem feito de toda a história do cinema”.

A exemplo do que acontece quando lemos Bazin, não é preciso concordar com Chico Lopes o tempo todo para desfrutar seus textos com proveito e prazer.

Há uma definição famosa de Bazin que, a meu ver, unifica os livros comentados acima (e, de certa forma, norteia as intenções desta coluna): “A função do crítico não é trazer numa bandeja de prata uma verdade que não existe, mas prolongar o máximo possível, na inteligência e na sensibilidade dos que o leem, o impacto da obra de arte”.

E como o cinema tem sempre a última palavra, ficamos aqui com uma breve e antológica cena de Os boas-vidas, com o comentário de Bazin: “O cinema da alma é também o mais exclusivamente atento às aparências, aquele onde o olhar tem mais importância. Fellini tornou definitivamente irrisória uma determinada tradição analítica e dramática do cinema, substituindo a ela uma pura fenomenologia do ser na qual os gestos mais banais do homem podem ser o sinal de seu destino e de sua salvação”. Divirtam-se:

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