André Novais, cinema de corpo e alma

No cinema

25.02.16

Está florescendo diante dos nossos olhos a obra de um cineasta singular, o jovem André Novais, mineiro de Contagem, região metropolitana de Belo Horizonte. A referência geográfica não é gratuita e nem mesmo secundária: todo o cinema do diretor se desenvolve a partir de sua cidade, de seu bairro, de sua própria família de origem proletária.

Isso não quer dizer que se trate de uma obra confessional, muito menos narcísica, voltada para o próprio umbigo. André Novais finca a câmera em território familiar para observar e recriar o mundo a partir de um ponto de vista muito sólido e pessoal. E o que pode haver de mais pessoal que o próprio corpo, a própria voz, e o corpo e a voz daqueles que lhe são mais próximos (a mãe, o pai, o irmão, a namorada)?

Ela volta na quinta, seu primeiro longa-metragem, que chega às telas das grandes cidades brasileiras (veja os horários de exibição no IMS) depois de ter sido premiado em Brasília, Buenos Aires e Curitiba, é, na falta de definição melhor, um falso documentário sobre uma família verdadeira.

Começamos acompanhando o que parece ser o dia a dia modesto dos pais do diretor, Norberto e Maria José, e nos enredamos sem perceber num quadro social e emocional mais amplo, que envolve os desdobramentos da família nuclear (André, seu irmão Renato e as respectivas namoradas, Élida Silpe e Carla Patrícia) e suas espinhosas relações com a cidade, o país, o mundo. Em nenhum momento se perde a dimensão material e suas asperezas, assim como em nenhum momento se perde a dimensão espiritual e suas aberturas de luz.

Ficção documental

A narrativa é episódica, lacunar, feita de breves encontros, conversas lacônicas, atividades miúdas do cotidiano. A situação básica que se desenha é o desgaste do relacionamento do casal mais velho, que parece à beira da separação. O pai, Norberto, conserta eletrodomésticos, joga futebol com os amigos, tem uma amante mais jovem. A mãe, Maria José, sofre em silêncio males do corpo e da alma, e resolve ir com uma amiga a Aparecida do Norte em busca de algum tipo de iluminação.

Tudo isso é ficção, mas filmado quase como registro documental e com um substrato de realidade que dificilmente seria alcançado com outro material humano, outra ambientação, outras ferramentas. O tom sereno da fala de Maria José, com sua deliciosa prosódia mineira, parece dar o tom desse drama em surdina, que casa perfeitamente com a canção de Paulinho da Viola (“Nada de novo”) tocada no início do filme e cantarolada por Norberto quase no final.

Pontuando o filme, as conversas dos três casais (os pais, os filhos com suas namoradas) na cama, com praticamente o mesmo enquadramento fixo frontal, trazem detalhes reveladores. Numa das primeiras cenas, por exemplo, Maria José tira o cobertor de casal e o troca por um de solteiro, que cobre só sua metade da cama. É o primeiro e sutil indício da separação iminente.

Na mesma cama, lá pela metade do filme, André conversa com a mãe enquanto lhe tira a pressão. Ele conta episódios meio cômicos de sua batalha de cineasta pobre e iniciante, ela lembra a história do próprio pai, avô de André, que sofreu dificuldades por não abrir mão do ofício que amava, o de instrutor de autoescola. É um momento discretamente tocante, a exemplo de outro em que, na sala da casa, vemos em primeiro plano Norberto, de perfil, vendo televisão, e ao fundo Maria José procurando uma música no laptop pousado na mesa. Ela não sabe o título da canção, cantarola uma parte da letra, o marido identifica “Eu preciso aprender a ser só”, de Marcos Valle, na voz de Maria Bethânia. Ele a tira para dançar e os dois improvisam um bailinho desajeitado. (Entre parênteses: na primeira versão do filme a canção era “Olha”, de Roberto Carlos, mas este não liberou os direitos e a cena foi refeita com outra música.)

O local e o global

Haveria ainda muito a dizer sobre o modo como o país e o mundo entram pelas bordas dessa crônica familiar: as reconfigurações da família, a conquista de espaço, a duras penas, pelas populações de baixa renda, a formação de uma cultura popular urbana híbrida, unindo o local ao global etc.

Consciente da dificuldade de transmitir em palavras o encanto e o frescor do longa de André Novais, remeto o leitor à melhor crítica que li a respeito, publicada por Raul Arthuso na revista Cinética. E uma última observação: o título poderia parecer uma resposta a Que horas ela volta?, de Anna Muylaert, só que Ela volta na quinta foi feito um pouco antes. A filmografia de Novais pode ser vista como um work in progress de que fazem parte os curtas Fantasmas (2010), Pouco mais de um mês (2013) e Quintal (2015). Cabe esperar com interesse o que virá depois.

A vizinhança do tigre

Por uma grande coincidência está entrando em cartaz também outro filme rodado em Contagem e que trafega igualmente na fronteira entre documentário e ficção. Trata-se de A vizinhança do tigre, segundo longa-metragem de Affonso Uchôa, vencedor do festival de Tiradentes do ano passado (veja horários de exibição no cinema do IMS).

Com escasso orçamento, o filme foi rodado ao longo de cinco anos, acompanhando as trajetórias cruzadas de um punhado de jovens amigos do bairro de periferia Nacional, que vivem no território exíguo e movediço entre pequenos trabalhos, pequenas diversões e pequenos crimes. (Um deles, Eldo Rodrigues, morreu antes de o filme ficar pronto.)

Rodado um tanto à solta, com os rapazes representando essencialmente seus próprios papeis, A vizinhança exala autenticidade e afeto pelos personagens, num lirismo quase pasoliniano, mas peca talvez por um excesso de dispersão. As cenas de brincadeiras e provocações pueris entre os garotos parecem estender-se desnecessariamente, afrouxando o ritmo e o interesse dramático. Mas é, de todo modo, uma experiência a ser conferida e valorizada. Um filme vivo, o que não é pouco.

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