As mães dos meus amigos

Correspondência

10.09.12

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Angie F, imaginar você adolescente andando por Dublin com a Louisa não é nada menos que sensacional!

Você devia ser demais. Vou ouvir Karina Plástico Bolha Não Me Ame Tanto Buhr em homenagem à adolescente que você foi (“Ao adolescente que fui”, Rimbaud, “Devoção”, Iluminações ? como gosto disso!). Ela é uma pós-feminista antirromântica pés-de-lã-na-jaca, é isso? Massa. E essa coisa de passar a tarde estourando plástico bolha tem a ver com alguns poemas seus, não?

Você contou da Pelotas dos anos 80. Vou te contar da Santo Anastácio dos 90.

Não dá pra dizer que era a Nova York do Oeste Paulista, mas tinha seus momentos. O Carnaval, por exemplo. Eu passava o ano esperando fevereiro chegar, e quando ele chegava eu ganhava quatro litros de uísque da minha mãe. Um farmacêutico amigo preparava umas anfetaminas turbinadas pra minha turma, e durante as cinco noites ao som do “King Kong” e da “Madura menina” ? duas marchinhas de autoria do meu pai que, a pedido do presidente do Nosso Clube, eram executadas todo ano pela banda contratada ?, os quatro litros de Red Label evaporavam como éter.

Até hoje me envergonha o método que usávamos pra convencer as mães de que quatro litros eram a quantidade ideal pra alguém com 15, 16 anos consumir num fim de semana prolongado. Basicamente, eu e meus amigos mentíamos, cada um jurando pra sua própria mãe que a mãe do outro já tinha comprado, e portanto aprovado a iniciativa, os uísques pro filho. Assim: o Lelê dizia pra mãe dele, a tia Soraia (Soraia Maravilhosa, pois cada mãe tinha um apelido secreto e uma música), que a tia Joana (Furacão), mãe do Frango, tinha comprado os uísques pro Frango; o Frango por sua vez dizia pra tia Joana que a minha mãe, Soninha Raio Laser, tinha comprado os uísques pra mim etc. No fim, as mães que, receosas, ainda não tinham comprado os uísques (isto é, todas) se sentiam caretas e velhas (nenhuma tinha 40 anos), incapazes de compreender os anseios da nova geração (elas eram uma delícia, agora me dou conta), e acabavam cedendo e comprando as garrafas.

Depois de beber até amanhecer, a gente fazia um pit stop no prédio onde antes funcionava o cinema pra tomar a canja da Ana, também mãe de um amigo nosso. De lá, pegávamos carona até o trevo, que ficava entupido de maconheiros e garotas mais ou menos disponíveis. Se bem que não importava o grau de disponibilidade. Por conta das anfetaminas, eu passava os cinco dias completamente brocha. Mas não me arrependo ? eis a terrível verdade.

Uma noite o Danilinho, filho da tia Marcinha (Meiga e Gostosa), não voltou pra casa. Foi encontrado debaixo da minha cama, às duas da tarde do dia seguinte, vestido com uma minissaia verde e um top preto. Nem eu nem ele lembrávamos como ele tinha ido parar ali.

Mas por que estou te contando tudo isso? Você falou do seu pai, do seu padrasto… Devo ter ficado com saudade (e remorso) da minha mãe. E parece que das mães dos meus amigos, vai entender. Melhor deixar pra lá e voltar pros anos 80, quando eu ainda frequentava o catecismo e rezava pedindo perdão a Deus por ter matado um bem-te-vi com meu estilingue. (Atenuante: minha avó fritou o passarinho e eu o comi.)

Eu tinha uns 10, 12 anos e vivia grudado no meu avô paterno, que tinha perdido as terras dele e, pra ganhar algum dinheiro, trampava de administrador da fazenda da irmã, a tia Marina. Ele ia pra lá umas três vezes por semana e eu ia junto sempre que podia. Acordava às cinco, colocava meu boné e minhas botinas, pegava meu canivete e esperava na porta de casa o jipe que ele dirigia (da tia Marina também) aparecer na esquina. Na fazenda, ajudava ele em tudo: contar o gado, curar bezerro, botar sal no cocho, matar porco etc. Ele era o meu ídolo e eu não queria decepcioná-lo. Por causa dele, meu sonho nessa época não era ser jogador de vôlei (seria mais tarde) nem poeta, mas peão, sitiante, qualquer coisa definitivamente rural.

Daí que quando eu chegava em casa, depois de uma manhã inteira de “trabalho” na fazenda, olhava pros meus familiares limpos e civilizados com certo desprezo. Eles eram “da cidade”, levavam uma vidinha fácil, asséptica, sem perigos aparentes, diferente daquela vida dura, e principalmente muito mais real, da roça.

(Respira fundo que eu já vou terminar.)

Bom, no final de uma dessas manhãs, um sábado ou um domingo, meu avô, conforme o combinado, me deixou na casa da minha avó materna, onde haveria uma macarronada pra comemorar não sei o quê. Eu estava orgulhosamente sujo de terra e de bosta, me achando ? kill me now ? muito macho. Entrei na cozinha apinhada de parentes em volta da mesa e, como era costume na nossa família meio italianada, todo mundo começou a gritar: aê, chegou o fazendeiro, como foi, andou a cavalo, matou alguma onça, seu avô tá com tosse etc. Quando o barulho diminuiu, minha doce, verdadeiramente doce e adorável mãe, correu na minha direção sorrindo e segurando na mão um peixe frito, e perguntou:

? Filhinho, quer sardinha?

Eu, muito sério e cheio de raiva, recusando a comida, respondi:

? Eu já disse pra você não me chamar de filhinho. E eu quero SARDA!

Acho que foi aí que virei poeta e entendi que, pro bem e pro mal, nunca poderia estar à altura do meu avô, nem muito menos do amor da minha mãe.

Reli o e-mail. Ficou deprimente. Não era a minha intenção.

Pra me redimir, ou pra não quebrar a tradição de colar um poema no fim das mensagens, te mando esse sonho (mentira) que tive com a Eva Green. Ainda não me decidi se presta ou não, então por favor não mostre pra ninguém.

Beijos e boa semana,

Fabrício

UM SONHO COM EVA GREEN

Eva Green num sonho
sussurrava assim
“tô com uma vontade
de tomar um gim!”

enchíamos a cara
(duas, três garrafas)
de repente estávamos
batendo tarrafa

num rio de Anastácio
? nossa, que demente!
onde em vez de peixe
pescávamos gente

pescamos meu pai
pescamos o Frango
pescamos um velho
que era autor de tangos

muito conhecidos
em toda a Argentina
Eva Green voava
feito uma heroína

eu ia por baixo
com meu cavalinho
Eva, lá do alto
mostrava o caminho

mas acelerava
excessivamente
e eu me via só
numa baita enchente

ela, arrependida
surgia de canoa
“desculpa, Fabrício”
“Eva, numa boa

ou você decide
se me quer ou não
ou vou ficar louco
e mais: sem noção

do que é certo e errado
do que é lealdade
se você prefere
vamos pra cidade” ?

num pub de Londres
(onde ela estudou
a arte de Shakespeare
quando lá morou)

nossa relação
deu uma esquentada
ela me jurava
“tô apaixonada”

mas aí o sonho
virou pesadelo
Eva se irritava
“não tenho cabelo”

eu dizia “gata
eu amo peruca”
e ela “o problema
é que sou maluca”

eu não me importava
“também sou xarope
aceito barata
recuso escalope”

mas ela era brava
e vinha com tudo
“não suporto homem
que usa veludo”

eu estava nu
e tão constrangido
ela provocava
“eu tenho marido”

“baby, que se foda
serei seu amante”
ela me apontava
a fila gigante

“ok, meu amor
serei seu escravo”
cínica, ela ria
eu lhe dava cravos

“não gosto de flores
detesto poesia”
“deixo de escrever
faço Engenharia”

“odeio edifícios
pontes de concreto”
“compro uma fazenda
no mei’ do deserto”

“me matar de sede
é o que você quer?”
“cavarei um poço
pra você, mulher”

?

isso durou sete dias
sete noites infernais
até cheguei a pedir
ajuda aos meus ancestrais

eles, porém, eram surdos
ou não falavam inglês
eu, aliás, também não
e em claro e bom português

resolvi “bela, é o seguinte
tô voltando pro Brasil
não vou te mandar à merda
nem à puta-que-pariu

te amo, você me esnoba
eu te quero, você não
antes de nos conhecermos
eu tinha a minha razão

de existir ? você era a musa
a esperança e a alegria
e quando me perguntavam
?qual a sua fantasia?’

eu respondia ?nenhuma
o que tenho é uma certeza
de que a vida é uma tragédia
de que a vida é uma tristeza

mas vale a pena viver
enquanto, dentro de mim
resistir, como um segredo
o encanto de Eva Green'” ?

de manhã me levantei
o céu estava nublado
bebi café, me troquei
e fui a pé pro trabalho

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