Atados por cartas

Literatura

28.09.16

São tantos projetos de livros, mas a saúde não é lá essas coisas e o estado de alma é bastante ruim. Também pode acontecer de escrever-lhe para pedir desculpas e preveni-la sobre a preparação de outra carta prometida, mais longa e detalhada, a ser enviada muito em breve, com várias coisinhas dentro de um pacote. Há promessas, pedidos, clamores, urgências e a imagem onipresente de uma mãe muito doce perdida atrás dos carrosséis.

A imagem materna emerge com toda a carga de equivocidade e excesso, em torno dela se delineiam frases de ternura e a memória insistente dos danos. As cartas transportam o amor sensual, mas também bruto, reivindicatório e violento de um poeta tão ambicioso quanto humilhado. Alguém que não se cansa de pedir comiseração, cumplicidade, compreensão. Pede dinheiro também. E não poucas vezes.

O dinheiro é um elo forte entre eles,  e por isso mesmo um assunto penoso, às vezes urgente, quase sempre inevitável. As dívidas não cessam de recordar ao poeta o travo amargo da indignidade. Para cada humilhação, um pequeno acesso de orgulho, um novo projeto. E é preciso que a mãe encare bem os fatos: ele é único em seu tempo. Pede então mais dinheiro, e mais comiseração. Pede que ela não seja muito dura com ele. Que tenha paciência e empatia por suas dores, que são muitas. Que seja cúmplice de sua aguda sensibilidade. Baudelaire tentará aproximá-la do universo literário que é a razão de sua vida. Envia-lhe resenhas de seus livros – inclusive as péssimas – e romances, artigos. L’Amour de Michelet, livros de Joubert, Flaubert, Diderot. Ela não parece entusiasmar-se profundamente, mas aceita os presentes. Talvez estivesse mais tomada pelas preocupações com o destino agourento do filho, do ponto de vista dos valores burgueses convencionais que cultuava, a vida confusa de Baudelaire só anuncia sofrimento e fracasso.

Certidões de nascimento de Charles Baudelaire (1821-1867) e sua mãe, Caroline Aupick (1793-1871).

Certidões de nascimento de Charles Baudelaire (1821-1867) e de sua mãe, Caroline Aupick (1793-1871).

Durante anos, Baudelaire e sua mãe mantiveram intenso contato através de cartas. É provável que depois da morte do filho, a quem ela sobrevive, madame Aupick tenha queimado as cartas que lhe enviou. Restam-nos portanto apenas as missivas enviadas pelo poeta a essa que foi a mulher mais importante de sua vida e a quem ele se lança por escrito em efusões de ternura que se confundem com a espiral de uma tormenta.

Boa parte dessa correspondência testemunha a urgência de vê-la e ao mesmo tempo a impossibilidade de visitá-la. Problemas de saúde, problemas de dinheiro. Os credores de Baudelaire procuram madame Aupick em diversas ocasiões, e durante toda a vida ela não deixou de socorrer financeiramente o filho boêmio, consumidor de haxixe, habitante sempre provisório de hotéis parisienses e comprador compulsivo de livros, obras de arte, móveis e antiguidades dispendiosas.

Se toda carta de amor é ridícula e se toda carta é sempre, em alguma medida, uma carta de amor, o afeto epistolar entre Baudelaire e sua mãe é testemunha de um drama amoroso dos mais fascinantes. Perto do fim de suas vidas – Caroline morre apenas quatro anos depois do filho –  trocam informações sobre dores e tratamentos, mantêm-se vivos para dar força um ao outro. Caroline Aupick foi também a destinatária dos enfados literários do poeta e de sua perda de vontade de viver. Quando toda a literatura francesa lhe soava abominável – exceto, talvez, Victor Hugo – Baudelaire se consola com a ideia de que ao menos ela, a mãe, é um livro a ser perpetuamente lido, cujo prazer jamais se esgotará. Essa mãe-livro tem dificuldades de perceber o valor de seus poemas, a dificuldade é ainda maior quando se trata de ler o livro caótico que é a vida de Baudelaire. Apesar disso e dos anos em que se distancia do filho, a figura que se pode inferir dessas trocas é a de alguém que nunca deixou de se preocupar com o filho, e que nas horas graves, não lhe negou socorro.

A equação insolúvel e viciosa entre as dívidas contraídas e a necessidade de viver para saldá-las alimenta boa parte dessa correspondência e ilustra bem o tipo de tragicidade que caracteriza a biografia de Baudelaire. As dívidas inextrincáveis que o poeta contrai ao longo dos anos são fonte de preocupações, mas também motivo para permanecer vivo. Saldar as dívidas antes de morrer, evitando mais desgostos para a mãe, é uma das razões de se manter vivo enumeradas por Baudelaire em suas últimas cartas.

O poeta tem sempre muitas coisas a dizer a madame Aupick e uma considerável dificuldade de dizê-las por escrito. Sabe que ao vivo muitos dos mal-entendidos seriam dissipados. Para o leitor contemporâneo, Baudelaire certamente escreve e diz muito de si mesmo e de seus afetos e rancores, mas na dinâmica insaciável dessa máquina materno-filial o que dizem um ao outro ou é excessivo, ou nunca é suficiente. Ele se dirige a madame Aupick como o centro magnético de seus afetos, sente muito sua falta, solicita sua presença, é um homem com problemas cada vez mais insolúveis e uma vida cada vez mais espremida entre a ambição dos projetos e a inviabilidade de sua realização. Do mesmo modo, a relação com a mãe se desenvolve entre o desejo de um reencontro e uma doçura que se sabe irrecuperável. Baudelaire gosta de terminar as cartas com expressões dramáticas e sentidas –“Beijo-a carinhosamente, se puder suportá-lo.”

Mas é também um sujeito repreensivo, cheio de exigências. Certa vez repreendeu Caroline por ela ter acreditado que um saquinho de chá magnífico tinha de ser misturado com um chá de pior qualidade. Mas, se é ela que o repreende: “Querida mamãe, nunca me repreenda por meus atrasos.”

Uma das cartas de Baudelaire à mãe.

Uma das cartas de Baudelaire à mãe.

A carta do dia 6 de maio de 1861 é talvez, de todo o conjunto, aquela que melhor concentra as reflexões maduras de Baudelaire sobre a difícil relação com a mãe.

No fim de março, te escrevi. Não nos veremos jamais! Estava em uma dessas crises em que se encara a terrível verdade. Eu daria nem sei o que para passar alguns dias com você, você, o único ser a quem minha vida está atada, oito dias, três dias, algumas horas.

A infância de Baudelaire, como se sabe, foi marcada pela perda do pai, Joseph-François Baudelaire, aos seis anos. A morte do pai o aproxima intensamente de sua jovem mãe, e durante um ano o menino vive o amor edipiano a todo o vapor. Esse período o marcará para sempre. Declaradamente apaixonado por Caroline, Charles vê seu reinado amoroso ameaçado pela entrada em cena de um oficial militar. Para piorar as coisas, Jacques Aupick não acha nada interessante a inclinação do enteado pela poesia. Menos interessante ainda lhe soa a intenção de Baudelaire de fazer dela sua vocação. O garoto será enviado a um pensionato, e a partir de 1934 – ele tinha então 13 anos – as cartas criam o espaço de uma nova aliança entre mãe e filho.

A correspondência nasce simultaneamente da ruptura de um período idílico e de um profundo sentimento de injustiça, e terminará no dia 30 de março de 1866, com uma carta enviada de Bruxelas a Honfleur, ditada por Baudelaire a outra pessoa. Fisicamente imobilizado, afundado em dívidas e cheio de planos, as últimas cartas enviadas a Caroline falam de nevralgias, dívidas sem remédio e remédio para vômitos à base de valeriana e óxido de zinco.

Entre Bruxelas e Honfleur, onde vivia madame Aupick, o traslado das cartas era eficiente: “Toda carta que sai à tarde de Bruxelas chega a Honfleur na noite seguinte. Toda carta que parte de manhãzinha chega a Honfleur na manhã seguinte”.

Em 1864, Baudelaire decide mudar-se para a Bélgica, é uma ideia fixa, uma miragem e também um meio de se distanciar dos credores. Viaja igualmente motivado pela ideia de encontrar um bom editor e um público leitor mais adequado para seus manuscritos, empacados por um bom tempo nas mãos de seu editor francês. As coisas não se passam do modo esperado, e na mesma época Baudelaire começa a apresentar sintomas de sífilis. Problemas gástricos agudos tratados à base de láudano, febres noturnas e vômitos constantes. Mas antes mesmo da irrupção dos sintomas, ainda em 1863, Baudelaire escrevera a Caroline cartas que anunciavam o que chamava de “doença do desencorajamento, do marasmo e da indecisão”, doença sobre a qual se perguntará se é real ou fruto de uma doença prévia, imaginária.

Como com a desesperança criar a esperança, com a covardia criar a vontade? Essa doença é real ou imaginária? Será ela o resultado de um enfraquecimento físico, de uma melancolia incurável na sequência de tantos anos cheios de sobressaltos suportados sem consolo, em solidão e mal-estar? Não tenho a menor ideia; o que sei é que sinto um desgosto total por todas as coisas, sobretudo por todo prazer (o que não é um mal), e que o único sentimento que me faz sentir vivo é um vago desejo de celebridade, de vingança e de fortuna.

Nessa carta e nas seguintes Baudelaire anuncia a Caroline sua vontade de retornar a Honfleur – boa parte de sua correspondência é permeada pelo anseio de voltar à “maison-joujou”, nome com que ele batizou a casa da mãe. Rapidamente os planos de retorno são substituídos por planos de um livro sobre a Bélgica. Na carta de 31 de julho de 1964, Baudelaire se dá conta de já ter redigido os três primeiros capítulos e informa Caroline de seu projeto de viagem para Liège, Gand, Namur, Antuérpia e Maline a fim de dar continuidade a esses escritos. Sua vida se parece cada vez mais com os paradoxos que animam sua poesia. Um homem profundamente inquieto intelectualmente mas cada vez mais debilitado e paralisado fisicamente.

A Maison JouJou, em Honfleur, e o general Aupick, padrasto de Baudelaire.

A sensação de exasperação e a impossibilidade de seguir vivendo já estavam presentes tal como relata a Caroline em 30 de dezembro de 1859:

O que sinto é um enorme desânimo, uma sensação de isolamento insuportável, o medo permanente de uma vaga infelicidade, uma total falta de confiança em minhas forças, uma absoluta ausência de desejo, uma incapacidade de encontrar qualquer divertimento que seja.

Quando Baudelaire é tomado pela doença que o levará à morte, Caroline virá em seu socorro. Quer levá-lo de volta a Honfleur, mas de algum modo sua presença o exaspera e ele tem acessos de cólera, tanto que os médicos pedirão que ela não o visite por um tempo. Ela escreverá então aos amigos de Baudelaire pedindo que o ajudem, que o entretenham e estimulem: Sainte-Beuve, Maxime du Camp, Hetzel e Banville, todos eles serão solicitados a visitar o “desafortunado”, como o chamava então Caroline. Durante os últimos meses de vida do filho, já paralisado e afásico, Caroline se vê diante de admiradores de Baudelaire, começa então a vislumbrar sua importância literária e a compreender o sentimento de injustiça. Em uma carta a familiares usa a expressão “inteligência de elite”, começa a ler de outro modo seus poemas. Gosta particularmente de um verso: “Escute, minha querida, escute a doce noite que avança”. Baudelaire morre ao lado de Caroline Aupick no dia 31 de agosto de 1867.

 

A vida de Caroline Aupick emerge no belo livro L’Idée si douce d’une mère de Catherine Delons, do qual me servi como uma das fontes de pesquisa para este artigo.

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