Beyoncé é nós! Ou o Brazil não conhece o Brasil

Miscelânea

16.12.13

para Aldir Blanc e,in memoriam, Maurício Tapajós, que faria 70 anos no próximo dia 27.

(Atenção: este texto contém ironias. Na dúvida, afaste-se.)

Na sexta-feira 13, o lançamento internacional do novo clipe internacional da popstar internacional Beyoncé pôs novamente o Brasil no centro do universo. São das favelas cariocas e das areias da baiana Trancoso as imagens plácidas dessa joia de 4 minutos e 30 segundos. Nossas belezas naturais e nosso povo alegre, humilde e ordeiro conquistaram mais essa glória. Parabéns a todos os envolvidos.

A música se chama “Blue”, homenagem da cantora à sua filha bonitinha. Mas podia ser também uma referência àquela arara do filme Rio, que agora já é Rio 2. Para alavancar (é assim que eles chamam) o lançamento internacional dessa superprodução internacional, o prefeito internacional Eduardo Paes entregou o réveillon carioca à campanha de marketing da Fox, dona da animação (com duplo sentido). Tudo azul. Já somos esgarçados o ano todo mesmo, por que iam poupar o nosso couro no último dia?

O bom é que o clipe da celebrity (ou commodity) veio coroar uma semana especial da nossa pátria, com reverberações internacionais. Não se trata do discurso da Dilma no funeral do Mandela, pois a África do Sul não é para principiantes. Lá, duas viúvas do mesmo líder se beijam, o tradutor para surdos ouve vozes (mas não sabe o que diz) e o carolão do Obama xaveca a nórdica para indicar, logo onde?, que a mulata não é a tal.

No domingo anterior, na última rodada do campeonato nacional do país que sediará a próxima Copa do Mundo, gladiadores de duas legiões demostraram com furor máximo seu amor aos brasões que defendem. O certame feudal ganhou um toque de século XXI com a informação de que a segurança da arena estava a cargo de uma empresa privada. É assim que a FIFA faz nas suas Copas. E foi o mesmo que fizeram Bushinho e Dick Cheney com o Iraque. Toda Joinville tem seu dia de Bagdá. Às armas, cidadãos!

Na quarta-feira, imagens de um temporal no Estado do Rio correram o mundo. Três pessoas morreram, milhares ficaram sem casa e, para surpresa dos que ainda ficam surpresos, a recém-inaugurada Via Binário, na zona portuária da capital, alagou. Descobriu-se que uma das iniciativas urbanísticas mais caras, anunciadas e exaltadas dos últimos tempos foi aberta sem um sistema de drenagem – e às portas do verão.

Na mesma quinta-feira em que noticiou as enchentes, O Globo abordou dois assuntos fundamentais da cidade que receberá as próximas Olimpíadas. Ambos estiveram na pauta das manifestações de junho passado.

Segundo reportagem do jornal, o grande obstáculo das Unidades de Polícia Pacificadora na Rocinha e em outras favelas do Rio são os becos. Seria difícil patrulhá-los e perseguir os bandidos. Na matéria só falam PMs e “especialistas”. Nenhum morador é convidado a explicar que os becos são utilizados pelos policiais das UPPs para espancar e achacar moradores, e até abusar de mulheres. Há registros em delegacias. Procurem saber.

(André de Lima Cardoso Ferreira, em 12 de junho de 2011 no Cantagalo, e Hugo Leonardo dos Santos Silva, em 17 de abril de 2012 na Rocinha, foram mortos por policiais em becos. Não eram traficantes. O corpo do pedreiro Amarildo de Souza, espancado até a morte na UPP da Rocinha em 14 de julho, ainda não apareceu. Não era traficante.)

Já na página de opinião, o empresário Jacob Barata Filho, herdeiro do seu Baratão (chefe do cartel que controla há décadas o transporte rodoviário do Rio), defendeu seu pai e seu setor falando em “filosofia empresarial”, “credibilidade”… A pergunta que ainda não foi feita aos Barata: os senhores deixariam uma pessoa de sua família andar num ônibus de alguma de suas empresas? Conselho de quem os utiliza: não deixem. É quase tudo um lixo: veículos, segurança, serviços… E lixo subsidiado com dinheiro público. O melhor negócio do mundo. Por isso, dona Baratinha, neta do seu Baratão, pôde se casar no Copacabana Palace. Às custas da miséria alheia.

Beyoncé faz o mesmo em seu clipe: ganha dinheiro com a pobreza dos outros. Muitos artistas já empreenderam isso no Brasil, mas Michael Jackson e Paul Simon puseram o supositório com mais elegância. “Blue” só não dá mais raiva porque é patético.

A falsa mulata põe uma falsa fantasia de escola de samba e simula sambar à beira do mar. A negra alourada põe camisa da seleção brasileira e simula jogar futebol (e sambar) num gramado com meninos. A falsa nativa cumprimenta mulheres e homens simples, gente humilde como ela, que mantém o sorriso no rosto apesar da dureza da vida. Mas o samba corre solto na Lapa! Afinal, o brasileiro é um povo pacífico, não é mesmo? Basta olhar a história da nossa formação.

Na favela, as galinhas passeiam, mães descem a escadaria com seus bebês no colo, marmanjos bebem cerveja e jogam sinuca, meninos fazem a dança do passinho – e Beyoncé ensaia até de noite para repeti-los. A câmera acompanha tudo suavemente, contemplativa, captando com seus filtros a poesia de tudo, dessa vida simples, dessa alma brasileira.

De vez em quando, surgem peitos e bundas, da própria Beyoncé ou de brasileiras, inclusive menores de idade. É quando se vê o business de frente (ou de costas, depende). A star até bate nos próprios peitos, como na mensagem de fim de ano da Rede Globo. “Hoje é um novo dia…” A câmera volta a ser suave. Torna-se quase leitosa nas cenas de mãe e filha, Beyoncé e Blue, a menininha já celebrity, já commodity.

Espera-se que, pelo menos, as centenas de figurantes do clipe (crianças em sua maior parte) tenham recebido um trocado por tamanha humilhação. Pior é ser humilhado de graça, certo? Bem, neste país até essa pergunta é difícil de responder. Mas as imagens fecharam uma bela semana da pátria.

Brazil!!!

* Luiz Fernando Vianna é coordenador de internet do IMS.

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