Brasil, dança absurda

No cinema

12.08.16

Uma imagem poderosa perpassa os vários segmentos de Brasil S/A, do pernambucano Marcelo Pedroso: sustentada por uma grua, uma enorme bandeira nacional paira sobre uma metrópole brasileira (Recife, mas não vem ao caso). O detalhe significativo é que a bandeira não está completa: falta-lhe o círculo central, azul, onde estão as estrelas e a divisa “Ordem e Progresso”.

Curiosamente, o logotipo oficial escolhido pelo presidente interino Michel Temer (com a ajuda de seu filho de sete anos) é justamente essa parte da bandeira suprimida no filme. Pura coincidência, pois Brasil S/A foi realizado em 2014, portanto muito antes do atual processo de impeachment, mas não há como deixar de ver o ensaio audiovisual de Marcelo Pedroso como uma espécie de comentário irônico ao ideário e à retórica do “Brasil grande e ordeiro” que ganharam novo impulso no atual governo.

O real coreografado

Mas o filme não é só isso. Chamei-o de ensaio porque não é propriamente documentário nem ficção. Sem nenhum diálogo ou locução, é um encadeamento de situações encenadas, mas filmadas como se fossem documentários, comerciais ou filmes institucionais – com a diferença de que são extremamente bem filmadas, coreografadas e montadas.

As primeiras imagens são de um navio singrando o mar. Atracado, ele desova no porto retroescavadeiras que descem a rampa em ritmo de desfile, ao som de uma música ironicamente épica. É a modernidade industrial chegando ao país do futuro. A partir daí, veremos uma série de clipes plástico-musicais em que homens e máquinas, no campo ou na cidade, interagem em estranhos e inquietantes balés.

Situações insólitas ali são apenas uma ligeira exacerbação do cotidiano. No trânsito entupido da metrópole, um aplicativo de celular chama um caminhão-cegonha em que os usuários sobem com seus carros para trafegar tranquilamente: sentados ao volante, um joga videogame, outro come um sanduíche, outra abre o teto solar e viaja como uma diva, com os cabelos ao vento.

Cortadores de cana se convertem em petroleiros e em astronautas, artistas negros de maracatu encenam uma paródia de baile na corte com os rostos cobertos de pó de arroz, fieis em transe num culto religioso choram, rezam, murmuram e gritam sem que ouçamos suas vozes. Tudo culmina com um espetacular eclipse motivado pela bandeira furada.

Modernidade torta

Sem que uma única palavra seja dita ou escrita, passam pela tela as grandes questões crônicas (e atuais) do país: a modernidade torta, a agroindústria predatória, a irracionalidade urbana, o racismo velado, o misticismo desesperado.

Ganhador de três prêmios no festival de Brasília (direção, roteiro e som), Brasil S/A deve muito de sua força à fotografia de Ivo Lopes Araújo, à música de Mateus Alves e à montagem de Daniel Bandeira. Num filme em que tudo depende do ritmo e da sutileza das associações entre imagens díspares e não consecutivas, a articulação entre essas instâncias é essencial. Em seus melhores momentos (como nas cenas de estrada, filmadas do alto), o balé mecânico remete irresistivelmente a filmes de Jacques Tati como Playtime e Trafic. O absurdo dói, mas tem sua graça.