Brasil em tempo de cinema

28.10.13

O homem das multidões, de Cao Guimarães e Marcelo Gomes

Em meio a clássicos de Ozu, Kubrick, Resnais e Coutinho, entre uma e outra novidade animadora vinda do Oriente, da Europa ou da América Latina, o que mais me impressiona nesta edição da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo é o vigor e a diversidade da nova safra nacional.

O público paulistano está tendo a oportunidade de ver pelo menos uma dúzia de ótimos filmes (contando só os longas de ficção) de realizadores brasileiros de várias gerações, de estreantes como Caru Alves de Souza (De menor) e Claudio Marques (Depois da chuva) a veteranos tenazes como Julio Bressane (Educação sentimental), Ivan Cardoso (O bacanal do diabo) e Helena Ignez (Feio, eu?).

Sobre alguns já falei aqui; outros – como o belo Tatuagem, de Hilton Lacerda – pretendo comentar nas próximas semanas, quando entrarem em cartaz. Esboço a seguir comentários rápidos sobre dois que vi anteontem (sábado), um em seguida do outro: O homem das multidões, de Cao Guimarães e Marcelo Gomes, e Os amigos, de Lina Chamie.

Travessia urbana

Inevitável especular sobre um diálogo subterrâneo entre os dois, buscar associações inesperadas. Ambos são radicalmente urbanos: o primeiro, situado em Belo Horizonte; o segundo, em São Paulo. Mais que isso: em ambos a metrópole se apresenta como local de travessia, de deslocamento permanente.

No mais, a relação predominante é de contraste. Em O homem das multidões, vagamente inspirado no visionário conto homônimo de Edgar Allan Poe, a ênfase está na solidão do indivíduo. O condutor de metrô Juvenal (o excelente Paulo André) mergulha vertiginosamente no anonimato, integrando-se à massa urbana sem se conectar de fato com ninguém. Na falta de um trailer, aqui vai uma reportagem televisiva, com cenas de filmagem e depoimentos dos dois diretores:

http://www.youtube.com/watch?v=ZA01MjWfdB4

O inusual formato vertical da imagem, bem como a recorrência de trilhos, corredores, escadas rolantes, acentua a sensação de constrição, de estreitamento do sujeito. Os silêncios e hesitações do protagonista e dos poucos seres com quem interage bastam para criar um mundo solipsista, quase autista. Um filme de ação dramática rarefeita, construído de acúmulo de tempos mortos, que lembra ao mesmo tempo Umberto D, de Vittorio De Sica, Jogo subterrâneo, de Roberto Gervitz, e Transeunte, de Eryk Rocha.

Em Os amigos, ao contrário, o acento recai sobre o contato, sobre a relação – de amizade, de parentesco, de trabalho, de amor – com o outro. Lina Chamie recicla e enriquece aqui a ideia básica de seu longa de ficção anterior, A via láctea (2007), qual seja, a de um herói (Marco Ricca, em ambos os filmes) que enfrenta obstáculos e intempéries para cruzar a cidade e realizar sua tarefa/desejo.

http://www.youtube.com/watch?v=FZ0ByNjhufk

Desta vez, o paralelo com o mito homérico é explicitado por uma encantadora encenação da Odisseia por crianças de uma escola, apresentada em montagem paralela enquanto o protagonista, o arquiteto Theo, empreende a acidentada travessia de seu dia: enterra um amigo de infância, briga com um engenheiro de ideias empedernidas, compra presente para um menino aniversariante, fica preso no trânsito e na chuva, até encontrar no fim da jornada o amor e a amizade, descobrindo que afinal talvez sejam a mesma e única coisa.

O espaço dos afetos

Ancorada em sua sólida formação musical, poética e de artes plásticas, Lina Chamie orquestra de modo admirável as linhas de força que o movimento de seu protagonista desencadeia, incluindo uma hábil sobreposição de tempos, lembranças e situações. A odisseia de Theo, concentrada em um dia, ilumina a organização do espaço e dos afetos na metrópole atual. Se O homem das multidões é vertical, Os amigos é um filme de espraiamento horizontal, em que as pulsões dos personagens transbordam e atingem os seres vizinhos, para o bem e para o mal.

Curiosamente, é numa cena da qual o herói está ausente que a cidade se revela inteira em seu horror e (potencialmente) maravilha. Julieta (Teka Romualdo), a empregada doméstica de Theo, volta de ônibus para casa. Uma moça simpática lhe oferece seu lugar para sentar. Numa rua inundada, o ônibus quebra e o motorista manda todo mundo descer no meio da enxurrada. Na confusão, alguém rouba a sacola de Julieta, com uma cesta de guloseimas que o patrão lhe havia dado. O patrão é bonzinho, o filme é generoso, mas a vida, ah, a vida é dura.

Em tempo: o título desta coluna alude a um livro clássico do crítico Jean-Claude Bernardet, que aliás aparece como ator em O homem das multidões, como pai da colega de trabalho (Silvia Lourenço) do protagonista.

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