Breaking Bad: nós somos o perigo

Miscelânea

21.05.13



Um químico de currículo e inteligência exemplares se vê aos 50 anos com um câncer no pulmão e quase nenhum dinheiro no bolso. Com uma mulher dona de casa e um filho deficiente, suas opções são tão animadoras quanto um programa sobre a vida dos elefantes exibido na tevê a cabo. Pode, por exemplo, entrar para o clube de cerca de 41% de cidadãos americanos endividados até o pescoço por conta de gastos médicos. Ou pode contar com a caridade de ex-amigos de juventude, todos mais bem-sucedidos do que ele.

Ao menos em Breaking Bad nosso herói toma uma decisão menos convencional: usa seus conhecimentos de química para fabricar a metanfetamina mais pura do mercado. Com ajuda de um ex-aluno junkie, o professor de escola secundária Walter White começa uma empreitada no mundo das drogas. Empreende sua virada de caráter, como indica o nome da série.

Bem sei que os seriados são uma droga moderna. Se você ainda não entrou nesse mundo, espero não iniciá-lo. Se já entrou, quero que se mantenha longe das drogas mais letais. Breaking Bad certamente é uma delas. Até o respeitável Enrique Vila-Matas se viciou na coisa e foi flagrado pelo El País atirado numa sarjeta, aspirando três temporadas num só dia.

Depois de um dia cansativo, é delicioso ter um novo episódio de uma boa e mesma história para acompanhar. Assistir a um filme pela primeira vez, iniciar um livro, tudo isso requer investimento afetivo. Disponibilidade emocional para conhecer novos personagens, deixar que entrem em sua vida, assimilar aquele universo. O golpe baixo do seriado é pular as apresentações. Já que todos aqui se conhecem, vamos apenas sentar no sofá e retomar a conversa de onde paramos.

Reconheço que isso estimula uma certa preguiça mental, enclausurando o espectador numa zona de conforto ficcional. Muitas séries que começam boas e terminam ruins exploram o quão quentinho pode ser o conforto. Por outro lado, o caráter episódico e estendido dos seriados — os melhores dentre eles mais parecem filmes de longuíssima metragem — cutuca o espectador a analisar a história, a refletir sobre ela.

Breaking Bad, por exemplo, fisga com truques de ciência que transformam um professor de química em super-herói — sugerindo que o conhecimento seja o correspondente real das nossas fantasias de superpoder — para mostrar em seguida o quão limitado é o poder desse conhecimento. Na vida real, mentiras, assassinatos, violência e exercício de poder se mostram mais eficientes que o conhecimento para tirar os personagens do apuro. O que nos primeiros episódios parece ser apenas uma história de ação sobre bandidos inusitados acaba se mostrando uma trama complexa sobre escolhas morais.

It’s all contaminated” [“Tudo está contaminado”], diz o protagonista num raro momento de reflexão. Num ambiente altamente controlado, qualquer impureza pode gerar consequências. No caso, Walt está falando sobre uma mosca em seu laboratório de produção de metanfetamina, mas podemos usar a mesma explicação para o que acontece em Albuquerque, cidade do Novo México onde a história se passa. Na fronteira com o México, é o estado americano com maior percentual de hispânicos [46%]. O espanhol é uma das línguas oficiais e a paisagem corresponde antes às nossas imagens mentais mexicanas do que às americanas. Apesar de ser um estado de fronteira, com delimitações pouco claras de onde termina uma coisa e começa outra, os personagens mais limitados de Breaking Bad constroem uma distinção quase física entre eles e um outro.

Um dos pontos fortes de Breaking Bad é corroer por dentro um esquema de frágeis máscaras sociais que esconde uma obviedade: It’s all contaminated. “Todas as pessoas, de todos os estratos sociais, faixas etárias e gêneros, ou seja, todos nós (e não uma minoria perigosa da sociedade) praticamos frequentemente fatos definidos como crimes, contravenções ou infrações administrativas e somos, por outro lado, vítimas dessas práticas (o que muda é a especificidade das condutas). Assim, tanto a criminalidade quanto a vitimação são majoritárias e ubíquas (todos somos criminosos e vítimas). Percepção heurística para um senso comum acostumado a olhar a criminalidade como um problema externo (do outro, outsiders), a manter com ela uma relação de exterioridade e, portanto, a se autoimunizar”, diz Vera Regina Pereira de Andrade em seu livro Pelas mãos da criminologia: O controle penal para além da (des)ilusão.

Fraude fiscal, pequenos furtos em lojas, policiais que manejam a Constituição segundo o que lhes convém. Além dos crimes mais canônicos: assassinato, chantagem. Produzir drogas seria menos grave que vendê-las? Posso usar meu esquema de lavagem de dinheiro para gerar emprego e renda para os mais carentes? A série mostra a universalidade das contravenções sem chafurdar na ingenuidade de convidar o adolescente que tentou comprar umas cervejas e o traficante de drogas a se abraçarem num rito cristão de expurgação da culpa. Não somos todos iguais, ao contrário do que sugerem os moralistas que igualam furadores de fila a políticos que roubam dinheiro de hospitais.

Por falar em hospitais, o sistema de saúde americano é tema recorrente. Quando um personagem fica doente, o plano de saúde é mais debatido que a doença em si. Médicos aconselham a família do paciente a não contratar terapeutas mais qualificados, pois já viram muitas famílias irem à falência por causa disso. Se você começa a pagar algumas despesas extra por conta própria, o plano pode aproveitar uma brecha legal para não pagar absolutamente nada.

A questão da paternidade — a busca pelo pai — permeia a relação entre Walt e seu ex-aluno, Jesse, ao ponto de Walt se tornar mais pai de Jesse que do próprio filho, Walter Jr. Note que o diálogo mais frequente entre Walter Jr. e seus pais é: “Você chegou cedo em casa”. “Não, não cheguei”, responde um filho que nunca é esperado.

O papel do homem como provedor é constantemente trabalhado. “A função de um homem é prover, mesmo quando isso não é reconhecido”, diz um traficante da trama. Um dos maiores problemas de Walt é que os frutos financeiros de suas contravenções costumam ser atribuídos publicamente à sorte ou à bondade de estranhos. Suas demonstrações de macheza no “trabalho” não mudam sua imagem pacata de professor. Era de se esperar que um gênio da química, o bandido mais procurado da região, tivesse preocupações mais importantes do que sua imagem perante os vizinhos provincianos, mas nessa Walt fica devendo.

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