Bressane e a educação dos sentidos

No cinema

13.12.13

Júlio Bressane, um dos grandes cineastas brasileiros em atividade, está com filme novo na praça, Educação sentimental. É talvez sua melhor obra desde o sublime Filme de amor (2003), e pode ser visto como uma síntese de suas obsessões recentes (o tempo humano e o tempo cósmico, a transparência e a opacidade, a tirania do trabalho e o ócio contemplativo/criativo). Pena que pouca gente vai ver. Pérola para os poucos, como diria José Miguel Wisnik.

http://www.youtube.com/watch?v=lD1BeIGVF4Q

Seu eixo é a amizade entre um rapazinho (Bernardo Marinho) e uma mulher vinte anos mais velha (Josie Antello). O tópico da educação sentimental de um jovem por uma mulher madura é recorrente na literatura mundial desde a Antiguidade. Aqui, Bressane o entrelaça ao mito de Selene, deusa grega da lua, e seu amor proibido pelo jovem e belo mortal Endimião.

O diretor batizou seus personagens, significativamente, de Áureo e Áurea. Além de relativo a ouro, o adjetivo “áureo” significa também “magnificente”, “que tem primazia” e, não menos importante, refere-se ao ciclo lunar que dura 19 anos.

Desde o início, portanto, as camadas de significação não cessam de se acumular no filme, como costuma acontecer em Bressane, que sempre definiu o cinema como “um organismo demasiado sensível, atravessado por todas as artes e disciplinas”.

Desafio à interpretação

A educação proporcionada aqui por Áurea a Áureo é, mais precisamente, uma educação dos sentidos. Nas conversas entre ambos, fala de literatura, de filosofia, de artes, de música, explica a origem das palavras, a história dos objetos etc. Mas o que se fala é apenas um aspecto do filme, conjugado, modulado e refratados por todos os outros: a composição da imagem, os movimentos (sutilíssimos) de câmera, os ruídos, a música, a relação entre cores, entre luz e sombra, a duração dos planos, a alteração da velocidade etc.

É, sem exagero retórico, um filme inesgotável, que nos desafia a todo momento a fazer associações e interpretações. Uma obra que nos confronta com nossa própria ignorância estética, filosófica, literária, musical, com nossa própria sensibilidade embotada. Há duas atitudes possíveis diante dessa interpelação: virar as costas, tachando o filme de obscuro ou hermético, ou abrir-se a sua generosidade, buscar aprender com ele e fora dele.

Alguns signos, formas e procedimentos ressaltam ao longo do filme. Sem preocupação alguma com o rigor analítico, vou me limitar a apontar alguns. São talvez pontas de icebergs a ser explorados em profundidade por mergulhadores de maior fôlego.

Transparência e opacidade

Há, por exemplo, a recorrência do motivo da transparência e da opacidade. Não apenas na cena magnífica em que Áurea desenrola diante da câmera um pedaço de filme em preto e branco, produzindo um rascunho da ilusão de movimento, enquanto discursa sobre o cinema, que “estará em breve no museu das sensibilidades perdidas”. Mas também no recurso frequente às “máscaras” que, como as íris dos filmes mudos, recortam apenas o pedaço da imagem que se pretende mostrar. Os próprios personagens seguram em várias cenas – sobretudo nos dez minutos finais – as folhas de papelão preto recortado usadas para criar o efeito.

A forma que mais se repete nesses recortes é o triângulo isósceles, símbolo do feminino e da divindade nas mais diversas culturas. Esse triângulo (um “V” invertido) reverbera inúmeras vezes na composição da imagem, por conta de cortinas parcialmente abertas, por exemplo, mas também das ruas e corredores por onde os personagens caminham em direção a um ponto de fuga/vértice – o que pode sugerir, aliás, a noção de penetração.

Triângulos aparecem também num quadro ao fundo da saleta onde os personagens conversam, e na vassoura triangular azul, sem cabo, pendurada na parede, que, vista a meia distância, pode remeter à imagem de Nossa Senhora Aparecida ou à do orixá Nanã. Remete também, mais concretamente, ao cantor Vassourinha, citado nas falas de Áurea e na trilha sonora. É a esse tipo de associação, pertinente ou não, que o cinema de Bressane nos instiga.

As entranhas e o cosmo

Há um diálogo constante das imagens com a tradição da pintura, sobretudo com naturezas-mortas, marinas e retratos, do Renascimento ao surrealismo, do barroco a Matisse.

A ideia-chave do filme é a de que vivemos numa época de valorização do dinheiro e do utilitarismo, que “empedrou o coração dos homens”. Por isso Bressane fez deliberadamente um filme anacrônico. Um filme não apenas fora de seu tempo, mas contra seu tempo. Como em Filme de amor, construiu como que uma ilha de sensibilidade em meio à estupidez reinante.

No centro dessa aula-experiência está a imagem da lua com sua “natureza andrógina, feminina em relação ao sol, masculina em relação à terra”. A lua como “intérprete entre imortal e mortal”. Também a mulher aparece aqui como ponte entre o contingente e o infinito. Por meio da dança, ela funde dionisiacamente as entranhas e o cosmo.

A lua está associada ao feminino, à fertilidade, à imaginação, mas também à doença e à loucura (a palavra “lunático” não saiu do nada, e em tempos antigos foi sinônimo de epilético).

Outras associações brotam sem parar: o trecho de película desenrolado por Áurea, salvo engano, é do Tabu de Murnau. Bressane fez também seu próprio Tabu (1982), e no centro de Educação sentimental comparece o tabu primordial, o do incesto, trazido à baila pela mãe de Áureo (Débora Olivieri).

Jogos visuais e verbais

Impossível dar conta da miríade de signos, símbolos, jogos visuais e verbais colocados em movimento pelo diretor num filme aparentemente tão plácido e comedido. Os dez minutos finais não são meras “cenas de filmagem”, à maneira dos making of convencionais, nem tampouco a assinatura metalinguística que nos habituamos a ver em várias obras de Bressane. São, na verdade, chaves de leitura, que ajudam a fruir melhor certas passagens e incitam a novas interpretações. Não são um apêndice ao filme, mas uma parte integrante, orgânica e essencial dele.

Educação sentimental, como toda obra de arte, não acaba quando aparece a palavra “Fim”, mas se espraia para além de suas margens, em todas as direções, com o espectador que o leva consigo ao término da sessão, pois, como diz Áurea a certa altura, “contemplar é participar”.

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