Cena de Answer Me, de Anri Sala

Cena de Answer Me, de Anri Sala

Breve ensaio sobre a delicadeza

Artes

03.11.16

Ao assistir Anri Sala: o momento presente, mostra desse artista em cartaz no IMS-RJ até o dia 20 de novembro, deparei-me com uma circunstância cada vez menos exercida no cotidiano, mas que encontra uma força indelével em muitas obras de artistas visuais: a delicadeza. Ela aparece na mostra sob as mais distintas configurações.

Em Làk-kat 3.0 (Brazilian Portuguese/Portuguese/Angolan Portuguese) (2016) assistimos a três videoprojeções que mostram três garotos num ambiente escuro, onde uma voz masculina os faz repetir palavras em uólofe, um idioma também falado em Angola. As telas mostram simultaneamente as traduções desse idioma para o português falado em Portugal, Brasil e Angola. As palavras têm interpretações ambíguas porque se referem “aos conceitos de escuridão e claridade e, em seguida, descrevem tons de pele e maneiras variadas de se referir a estrangeiros” [1]. A delicadeza se converte em sutileza e alta carga de sensibilidade nessa obra. Digo isto porque não sabemos ao certo o que acontece acerca do universo de emissão daquelas frases (“ainda mais claro”, “pele clara”, “pálido”, por exemplo): parece uma descrição do espaço em que os meninos estão (a câmera muitas vezes está voltada para uma luminária acesa com uma luz branca) ou uma descrição física do Outro que, mediante o tom de voz e a repetição da frase pelos garotos, coloca-se como uma ameaça (estrangeira). Sala explora com delicadeza e afetuosidade um complexo emaranhado que envolve políticas de alteridade, segregação, pobreza e estranhamento.

Cena de Answer Me, de Anri Sala

Cena de Answer Me, de Anri Sala

Em Answer Me (2008) a delicadeza em relatar o fim de uma relação tem a força de um soco no estômago. Num mesmo salão e em cantos opostos, está um casal. O vídeo exibe o rapaz de costas para a mulher, insistindo em tocar bateria, não dando ouvidos aos lamentos e ponderações dela convertidos em sussurros. Está “voltado para a parede de uma cúpula geodésica que amplifica e ecoa o som de sua performance musical; ela, ao lado de um tambor sobre o qual duas baquetas se mexem aparentemente sozinhas.”[2] A caixa acústica que é esse domo faz com que o seu poder de ressonância faça vibrar a superfície do tambor. A “fala” entre o casal se dá por meio da gestualidade de objetos que são animados, no fim das contas, pela própria tensão que existe entre o casal. Apesar da alta potência com que o rapaz espanca a bateria, Sala põe em evidência silêncio, incomunicabilidade e sutileza.  E é essa ambiguidade que me atrai no artista e em ter ficado propenso a estabelecer relações, em especial, com três artistas brasileiros que têm a suavidade, a delicadeza e a sutileza como leitmotiv de seus trabalhos. São eles: Brígida Baltar, Cao Guimarães e Thiago Rocha Pitta.

A obra de Rocha Pitta sempre se caracterizou pela forma como transformou a imagem da natureza em algo fluido. Desde as suas primeiras instalações, aquarelas e vídeos, percebia um interesse por um estado constante de transformação da matéria. É o caso de Projeto para uma pintura temporal (2002), pintura que se colocava como expansão da própria ideia que se faz dela. Convertendo-se em instalação ambiental “com dados atmosféricos do lugar”, como salienta o artista, a obra alterava permanentemente a imagem que se fazia dela: partia da ideia de um relevo topográfico que, produzido com limalha de ferro sobre um tecido de dimensões monumentais, sofria lentamente uma erosão pela excessiva umidade do local. O tecido permanentemente sofria “alterações pictóricas”, transformando-se delicadamente em uma pintura viva.

Projeto para uma pintura temporal (2002), de Thiago Rocha Pitta

Projeto para uma pintura temporal (2002), de Thiago Rocha Pitta

Já em seus vídeos mais recentes, o artista continua explorando as relações topográficas do lugar em que realiza a obra, mas com uma diferença que amplia ainda mais o seu caráter de suavidade que é a escala. Em Danäe nos jardins de Górgona (2010), o foco da câmera é o feixe de mel que percorre a topografia de uma montanha de pedra até o seu encontro com o oceano. Tudo acontece mediante a construção de um tempo próprio, estendido, deslocado e demorado. A câmera nos aproxima de tal forma do mel, cor de âmbar, que nos transformamos em parceiros, cúmplices de uma viagem em que percorremos as cores e texturas das rochas. Navegamos por séculos de história, cujas marcas dessa evidência é a própria topografia da rocha, que se faz a todo instante – numa velocidade cujo olho e cérebro humano não podem dar conta –, vítima do seu próprio processo de sedimentação.

Ademais, pintura e vídeo estão se fazendo simultaneamente em Danäe, pois há uma preocupação em documentar uma gestualidade própria da natureza e que se aproxima do gesto e da forma pictórica. A maneira como o mel escorre e o tempo que leva para executar tal ação são operações ou medidas muito presentes na pintura de Thiago. Ao ter a natureza como meio e tema de suas obras, ele se interessa em preservar o tempo próprio do acontecimento e em interferir o mínimo possível na natureza. Percebam que ele não quer levantar nenhuma bandeira ecológica ou algo do gênero, mas – como se isso fosse possível – estender o tempo da natureza ao seu modo. Sua delicadeza como artista está em entender como a natureza age e generosamente nos ofertar essa experiência como arte. O mel que flui por entre as reentrâncias da rocha pode ser metaforicamente percebido como a tinta escorrendo pela tela. A câmera aproxima-se da natureza, mudando a nossa perspectiva e escala sobre o mundo e transformando aquela montanha de pedra, ou seja a sua própria materialidade, em gigantescas frestas, aberturas, descidas, depressões e vales que se constroem e se desfazem na mesma velocidade. O artista nos alerta sobre a ação de uma transformação mínima, imperceptível, mas constante. E é por essa escala de silêncio e suavidade que ele também se interessa.

Algo que sempre me chamou a atenção na obra desses quatro artistas é a forma como exploram um ambiente ou situação que se coloca a parte dos acontecimentos frenéticos, ruidosos e espetaculares do cotidiano. A eficácia nas obras dos quatro não está em abandonar ou anular o acúmulo absurdo de informação com que vivemos – o que parece uma tônica incondicional e irreversível -, mas em conciliar essa imagem catastrófica do presente com uma visão de mundo agora regida pelo excesso de nada, de silêncios. E fundamentalmente em como podemos construir uma rede de significados e potências nunca antes imaginada.

Nas fotos de Coleta da neblina (2002), Brígida Baltar investe no processo do artista como personagem e num contexto em que ficção e realidade se convergem, embaralhando a fantasia com as nossas noções seguras sobre o que nos cerca. As fotos exibem uma paisagem – uma serra – coberta por neblina espessa, tendo a artista travestida numa espécie de cientista, que coleta em recipientes de vidro o elemento natural, transitório e efêmero que dá título à obra. A artista age como uma coletora de imaterialidade, isto é, transmite volume, peso e densidade a algo que sempre foi identificado como etéreo. Constrói um regime de diferença ao mudar a escala das coisas: a neblina passa a ter qualidades que se equivalem às dadas aos humanos, pois ela é percebida como algo delicado, suave e singelo. Deixa de ser um nada e passa a ganhar um corpo sob duas circunstâncias; primeiro, como presença material ou evidência no espaço; e, depois sendo estabelecidas analogias com o ser humano.

Cena de Coleta da neblina (2002), de Brígida Baltar

Cena de Coleta da neblina (2002), de Brígida Baltar

O fato de vagar por uma paisagem coberta pela neblina amplia ainda mais o senso de silêncio da obra. Nas fotos, a coletora vestida de branco se confunde com a própria névoa, pois nunca aparece inteiriça, sempre camuflada por várias camadas de bruma. Na vastidão da paisagem, no quase desaparecimento da imagem da coletora e permeado por uma atmosfera do sublime, percebe-se uma conjunção rara entre homem e natureza. A coletora transita com vagar e cuidado por dentro daquele corpo de nuvens. Há um respeito e uma atenção aos mínimos detalhes. Prazer e medo parecem se confundir naquele momento. Parece-me que a coleta quer comprovar, além da densidade do etéreo, a possibilidade de guardar e revelar odores e temperaturas daquela bruma. Há uma tentativa de comprovar cientificamente que a delicadeza e o silêncio são formas palpáveis e eficientes de tornar tudo mais lento, e de tornar os olhos do sujeito mais sensíveis para o mundo. E isso não é pouco.

Já em Cao, as obras ativam acontecimentos cotidianos triviais que são da máxima expressividade. São trabalhos que o artista chama de “microdramas da forma”, ou seja, guardam em si uma potencialidade dramática qualquer. Uma bolha que vaga por uma casa abandonada e uma trilha feita por formigas são imagens que possuem em si mesmas uma enorme dramaticidade. Cao pergunta o que é a ação. E, para ele, pode ser um longo plano de uma bolha flutuando pelo espaço e passando pelas mais distintas paisagens. Um nada, mais uma vez. Quando o entrevistei em 2008 sobre a ideia de um acontecimento do nada em seu trabalho, ele me disse: “Isto é um dado intencional, porque quero segurar o espectador pelo contrapé, ou seja, pela antítese do que ele está acostumado a viver. Quero trabalhar com o contrarritmo do cotidiano. Vivemos alucinadamente, imersos numa rede de comunicações que não permite que reflitamos sobre o nosso lugar no mundo. Portanto, como ver o mundo de outra maneira? Ou como ofertar o tempo de outra maneira para o outro?” [3].

Em Nanofania (2003) e Concerto para clorofila (2004), Cao esculpe o tempo operando com índices de imaterialidade – bolha, luz e sombra – que passam a deter texturas, formas, cores, uma estrutura de pele e carne. No primeiro filme, alterna ações rápidas e cotidianas, mas alijadas do nosso campo de entendimento sobre o mundo por serem menores, como a explosão de bolhas de sabão e o saltitar de uma mosca. Todas as cenas são acompanhadas pelo som de um piano de brinquedo. Nossa perspectiva é dirigida para ações, lugares e seres que mal percebemos no cotidiano. São fenômenos cadenciados por um tempo e uma escala próprios. Em Concerto para clorofila somos testemunhas oculares do orvalho sobre a planta e de uma teia de aranha presa entre duas folhas, com a trilha sonora acrescentando o tom dramático e pulsante do que poderíamos chamar de pequenos dramas. São acontecimentos que podem fugir aos nossos olhos e que, portanto, são desprezados, mas que nos lembram que são exatamente o que constituem a vida. Cao constrói não um mundo paralelo, mas um microcosmos do real.

As obras desses artistas chegam ao mundo pelo prisma da delicadeza e por uma narrativa com fortes ligações com a literatura e o cinema. Interessa-lhes vasculhar e desmembrar as camadas que qualificam o real, pôr em dúvida as certezas que temos sobre o mundo, desviando nosso olhar para o que negligenciamos ou qualificamos como diferente ou menor. Investem na singeleza e no silêncio, certos de que suas projeções são voltadas para a construção de novos olhares sobre o mundo.

[1] ESPADA, Heloisa. A memória como matéria-prima. In: ESPADA, Heloisa (Org.). Anri Sala: o momento presente. São Paulo: IMS, 2016, p. 25.

[2] Idem, p. 7.

[3] SCOVINO, Felipe. Arquivo contemporâneo. Rio de Janeiro: 7Letras, 2009, pp. 52-53.

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