Cala-se a soft voice de Joan Mendes Campos

Literatura

12.02.16

Dava gosto ouvir o nome Paulo dito por Joan Mendes Campos. Pronunciava-o com o P aspirado, como Paul, no inglês, e sempre com um sorriso terno, de admiração guardada.

Paulo e Joan Mendes Campos

Inglesa de nascimento, chamava-se Joan Abercrombie quando chegou ao Brasil no final da década de 1940 para visitar um irmão, que morava no Rio. Por meio dele conheceu Paulo Mendes Campos, naquela época começando a carreira de cronista refinadíssimo no Diário Carioca e depois nos principais jornais da cidade. Com vocação ainda para marido e poeta, não esperou muito, e em 25 de outubro de 1951 casou-se com Joan. No mesmo dia, lançou A palavra escrita, seu primeiro livro de poemas, a que se seguiriam várias coletâneas de crônicas.

“Quem mora no Rio, por ciência ou por instinto, sabe que no mês de fevereiro pode acontecer tudo: o calor de rachar passarinho e o aguaceiro desatado; as calmarias de um amor firme e divino e os emboléus de um amor caótico e infernal”, escreveu na pequena joia que é a crônica “Rio de fevereiro”. Nesse mês ele nasceu, no dia 28, em Belo Horizonte, e nesse mês, no último dia 9, na terça-feira do carnaval carioca, morreu Joan Mendes Campos, provando que o marido falou a verdade: “No mês de fevereiro pode acontecer tudo”.

Não sei a idade de Joan, nem preciso saber. Calculo que estivesse em torno dos 90 anos, o que não significa dizer muito sobre quem preservou uma juventude interior visível na agilidade do andar, nos interesses, no gosto pelas viagens. E na graça com que, ao verbalizar uma frase em excelente português, acrescentava um “no?” bem inglês, dotando a afirmação/pergunta de charme pessoal.

Tão bem misturadas eram suas nacionalidades de inglesa e brasileira que Otto Lara Resende tratou de rebatizá-la: Joaninha. E era assim que a gente se sentia tentada a chamá-la, não fosse ela, ao mesmo tempo, uma inglesa que, pela natural distinção, inspirasse o tratamento de Mrs.

“A primeira coisa que noto na mulher, depois da qualidade da expressão, é a tonalidade da voz” – escreveu o cronista no texto publicado na Manchete, em 1971. E segue afirmando que ama o rei Lear no momento em que, segurando nos braços a filha morta, Cordelia, o velho pai diz os versos assim traduzidos por Millôr Fernandes: “Sua voz foi sempre suave, meiga e baixa, uma coisa excelente na mulher” (Her voice was ever soft,/ gentle, and low, an excellent thing in woman).

Certamente Paulo Mendes Campos terá se encantado com aquele “no?” que permaneceu no tom discreto da voz de Joan. Li há algum tempo  que em 1982 foram vistos de mãos dadas, tomando vinho branco e sussurrando no cantinho de um restaurante de Petrópolis. Estavam casados havia 31 anos, tinham criados os filhos, Gabriela e Daniel, e acompanhavam o nascimento dos netos. A matéria não informava o nome do restaurante, e, numa das vezes em que estivemos juntas, eu lhe perguntei se lembrava qual era. – Ah, era o Le Moulin, que hoje não existe mais –, Joan respondeu-me imediatamente, sorrindo feliz.

Nada como o hábito brasileiro tão cotidiano do sagrado cafezinho para se reconhecer a elegância de uma pessoa. Foi com uma bandeja impecável sobre a mesa de centro, quatro xicrinhas de porcelana, uma pequena tigela de biscoitos e quatro minicopos de água com gás, no more, que Joan nos recebeu em seu apartamento, em 2011, para tratar da vinda do arquivo de Paulo Mendes Campos para o IMS, o que, de fato, aconteceria pouco depois.

O café, o simples café, estava perfeito: saboroso, perfumado, qualidades que ela atribuía ao coador de pano e às mãos especiais de Dulcelina, que trabalha para a família desde muito jovem. A conversa, liderada por Flavio Pinheiro, ao lado de Lucia Riff, se estendeu pela tarde enquanto eu, encantada, me aproximava do tesouro que eram aquelas pastas, cadernos, recortes de jornal, guardados com zelo até o momento em que Joan julgou ser tempo de lhes dar destino certo.

A foto de ilustração, tirada por Luiz Carlos Barreto, mostra os Mendes Campos numa festa, no Recife. Tempo dos elegantes carnavais de clubes, muito antes da morte do cronista, em 1o de julho de 1991. Coube ao carnaval de 2016 devolver Joan a Paulo Mendes Campos.

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