Cartão-postal de sempre

Correspondência

16.05.11

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Ri,

achei ótimo receber, em primeira mão, sua carta que “vai ao ar” na quarta. Assim tenho bastante tempo para matutar como responder. Infelizmente, escrevo devagar e quando escrevo não consigo me desligar do que vai sendo escrito aos arrancos. Portanto, não escrevo só quando escrevo. Continuo escrevendo mesmo quando não escrevo. Meu rascunho é sujíssimo. Acho que ele reflete, dentro do possível, como me sinto ou sou por dentro. No poema, essas dificuldades garranchosas cabem, já que a poesia tem um grau de obscuridade por natureza. Além do mais, o poema eu escrevo, substancialmente, para mim, desde que me entendo. Claro que vou gostar e muito que os outros gostem, mas o primeiro jato constitutivo vem sem pensar em ninguém, em nenhuma recepção, até porque só sei fazer assim, porque acredito que tudo o que quer ser arte é de um autodidatismo repentino, por mais escolado ou erudito que o fulano seja, pelo menos na sua base, no seu ponto de partida fundamental.

Mas esse texto, essa carta não vai só para você; o suporte dela chega a ser insuportável de tão grande. Imaginar que alguém possa estar me lendo no Polo Norte me dá, juro, uma aflição danada, uma agorafobia que não combina com meu modo de ser, com o que sei escrever, pois o poema moderno, só muito raramente é sinfônico, sua música é de câmara, ouvida geralmente, por audiências pequenas, e mesmo ser for operístico acontece o mesmo, pensando bem. A poesia, cada vez mais, é para poucos. Acabei me resignando por ter essa sina, esse sinal do tempo. Outro dia, o Paulo Henriques Britto estimou que, no Brasil, só mil pessoas leem poesia, verdadeiramente. Concordo com o número, embora, por mais acostumado que esteja com isso, fico chocado nos dias bons (que não são tantos assim), e irritado nos outros, que são maioria. E tem mais: como isto aqui é um trabalho contratado, pago, eu que escrevo de graça (embora não ache graça nisso) fico mais aflito ainda. O amabilíssimo Flávio vira um patrão de cenho cerrado a quem eu devo satisfação. Vivo contando caracteres por causa dele, por causa do gabarito pedido ou ordenado? Como tenho uma dificuldade neurótica de compreender e aceitar hierarquias, que me atrapalha a vida desde criança, só me resta engolir em seco e ir em frente sem saber responder à pergunta, e que, se soubesse, como seria normal a um sujeito pra lá de maduro, me acalmaria um bocado. Toda essa dificuldade minha de cumprir prazos quando escrevo provém, creio, de eu ser mais um reescritor permanente do que um escritor duradouro, que faz rascunhos até de bilhetes domésticos.

A sua “descoberta” do Rio bate com a minha. Afinal, se para mal dos meus pecados, sou bem mais velho do que você, essa distância cronológica não é nada na vida de uma cidade. Você, portanto, descobriu o Rio na mesma época que eu: seu retrato do Rio é uma foto do mesmo filme, onde estou, com as primeiras espinhas, que se mandou revelar. Por isso mesmo, sua narrativa poderia ser minha, pois me reconheço recém-saído das calças curtas sentindo surpresa parecida com os nomes e um certo enleio com os cheiros que a cidade litorânea exalava. Há até uma fixação acerca de um nome: Real Grandeza, que foi uma homenagem ao Príncipe D. João. Mas antes de saber disso fiz minha “fantasia e marcha fúnebre”, que durou muitos anos. Será que ele, o nome, qualifica a morte e ironiza a vida? Era o que eu pensava e fantasiava. Pois a rua Real Grandeza é a que leva ao Cemitério São João Batista, onde a maioria dos sócios do “clube dos quinhentos” e seus descendentes vão sendo enterrados, cemitério esse onde minha família tem seu jazigo perpétuo.

Mudando de assunto correndo, o Pão de Açúcar, pelo menos, posso oferecer inteiro e íntegro desde o chão daqui de casa (como na carta anterior) até ao “cartão-postal de sempre”, antes que o Sérgio Dourado se encarne – de vez – no Eike Batista:

 

O primeiro arranha-céu

foi a pedra

do Pão de Açúcar:

monumento onde o mar

se amarra

               o mato cresce no pedestal

e o abraço da baía

completa o cenário

– o lugar-comum –

o que já estava escrito

pelos cronistas lapidares

e por mim

quase com as mesmas palavras.

 

Mas tenho minhas dúvidas quanto ao Corcovado:

Encostado no céu, o Cristo

cercado de antenas de TV>

assina em cruz

todas as folhas da paisagem

autentifica o panorama, o Corcovado

sobre esta baía que também

abre os braços, e é a paixão dos Fortes

e que só um pintor de domingo

apoiado no paredão da Urca

saberá retratar em veras cores

o amanhecer e o pôr-do-sol arrebatados

que por aqui ainda se fazem

antes que aluguem até o olhar deste lugar

e construam uma torre

um edifício – ad infinitum.

 

Beijinhos sem ter fim, como dizia Vinicius e Tom, no disco Chega de saudade, na voz da Divina Elizeth Cardoso. Armando.

 

* na home, a imagem que ilustra este post: de Marc Ferrez, Vista do Pão de Açúcar tomada do morro da Urca. Rio de Janeiro-RJ, c. 1915 

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