Cavaleiro sem cavalo

Literatura

25.06.13

Cleber Teixeira

Algum lugar aonde nunca fui, alegremente além

 

e. e. cummings

Em 2007, tive a oportunidade de visitar o editor, poeta e tipógrafo Cleber Teixeira em sua casa em Florianópolis. Quando cheguei, Cleber primeiro me levou para tomar um café na cozinha, onde havia livros entre as latas de biscoito e, se lembro bem, até em cima da geladeira. Na verdade, somando cozinha, sala e corredor, devo ter cruzado com cerca de 5 mil livros. Mas o que devia impressionar não era tanto o número, e sim a disposição: os livros, em vez de organizados em um só cômodo, estavam espalhados pela casa, tomando conta de tudo. Apenas quando terminamos o café, para minha surpresa, Cleber sugeriu que eu fosse finalmente conhecer sua biblioteca, no andar de baixo.

Lá, além das estantes de livros, inclusive com algumas edições raras que por segurança nem podiam ser mencionadas, ficava também a oficina da Noa Noa, editora artesanal que fez história no país e para a qual Cleber dedicou cerca de 40 anos de sua vida. Em uma pequena sala vigiada pelos retratos dele ao lado de alguns amigos, como os críticos literários Davi Arrigucci e Boris Schneiderman, estava a única impressora tipográfica que o editor comprou na vida, em 1965, um modelo raríssimo do século XIX. Foi através desta impressora e de um paciente e caprichoso trabalho de composição que poetas como e. e. cummings e Stéphane Mallarmé deram as caras no Brasil.

A Noa Noa ficou conhecida por editar “livros inviáveis”, segundo a definição da jornalista Rafaela Biff Cera, autora de um minucioso perfil escrito sobre Cleber. O editor sempre fez questão de afirmar que só publicava livros de sua predileção, e foi assim que a Noa Noa construiu um catálogo que vai das traduções pioneiras da poesia de Mallarmé feitas por Augusto de Campos, sem dúvida um dos principais parceiros da editora, até uma entrevista com Paul Gauguin, artista que inspirou o nome da editora – Noa Noa é o título de um relato em que Gauguin descreve as experiências de uma viagem que fez ao Taiti. Ao todo, foram mais de 60 títulos publicados, um mais precioso do que o outro. De resto, não é nenhum exagero afirmar que Mallarmargem, publicado em 1970 em edição bilíngue e com tiragem de 225 exemplares, só pra ficar no exemplo mais óbvio, é um marco na história da poesia no Brasil.

Além das traduções de poesia, o catálogo da Noa Noa – que aliás está em grande parte disponível na internet, com preços que vão de R$30 a R$300 – também incluiu uma série de poetas brasileiros que, com o tempo, se mostraram fundamentais, como é o caso José Paulo Paes e Affonso Ávila; e também gravuras e desenhos, por exemplo, de Van Gogh e Jean-Baptiste Corot, o que aponta para uma indistinção radical entre literatura e artes visuais. Curiosamente, Cleber disse mais de uma vez que ganhou seu primeiro livro antes mesmo de aprender a ler, uma edição portuguesa das obras completas de Monteiro Lobato, “dois volumes farta e belamente ilustrados”. “Fiquei de tal maneira deslumbrado com o presente que acho que naquele momento, de modo silencioso, mas solene, decidi que o que eu gostaria de fazer nesta vida era escrever, fazer e ler livros”, me disse Cleber na ocasião.

Noa Noa

Bastante reservado e discreto, mas jamais inacessível, Cleber Teixeira fazia questão de receber em sua oficina qualquer pessoa interessada em conhecer os processos e a história da Noa Noa – não antes de uma breve passagem pela sua cozinha, ritual que, como vim a saber depois, era praticamente obrigatório. Desta maneira, influenciou e mesmo ensinou pelo menos duas gerações de artistas visuais, desde estudantes de gravura até novos tipógrafos e editores. O poeta e editor Ronald Polito, que realiza hoje em sua Espectro Editorial um processo também artesanal, além de destacar a qualidade do catálogo da Noa Noa e “os papéis de alto nível que Cleber usou, como é o caso do italiano Fabriano Ingres”, lembra que “o trabalho com tipos móveis é algo que praticamente ninguém fazia ou faz no Brasil”.

De fato, além de publicar textos de risco, era raro também o processo de composição com tipos móveis, que envolve outra relação com o tempo e mesmo com a escrita, sendo necessário imprimir letra por letra de chumbo, como se pudesse ter o texto nas mãos. É interessante pensar que, na maioria das vezes, Cleber publicava o que havia de mais contemporâneo e desconhecido, e usando para isso o método mais arcaico das artes gráficas, mas de nenhuma maneira superado, fazendo o leitor viajar por dois tempos. De outra maneira, a Noa Noa não deixa de ser um projeto do poeta que Cleber Teixeira sempre foi, tornando a composição uma forma de leitura e, a rigor, também de escrita. “Eu sinto, ao compor, o peso das palavras”, disse naquela ocasião, o que ainda me parece um depoimento bastante revelador, a fala de um poeta.

Além de editar, Cleber também escreveu seus próprios livros, algumas vezes esquecidos, como é caso de 3 poemas do poeta, cavaleiro sem cavalo e tipógrafo Cleber Teixeira e Armadura, espada, cavalo e fé, títulos que lembram uma poética medieval e dão a pista de outra paixão que o poeta cultivou além dos livros – os cavalos.Carioca de nascimento, crescido em Jacarepaguá, Cleber Teixeira vivia desde 1977 em Florianópolis, cidade onde veio a falecer na madrugada de sábado para domingo, aos 74 anos de idade, levando consigo a frase de Dom Quixote impressa na porta de sua oficina, “Aquí se imprimen libros”, mas deixando, além de uma biblioteca inteira, também uma forma de viver com os livros e sonhar com eles, talvez a maior lição do cavaleiro de La Mancha.

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