C’est la danse nouvelle, Mademoiselle!

Música

20.10.11

“Boa noite, ouvintes de todo o Brasil!” Quando Almirante lançou o novo big broadcast da Rádio Tupi em 1947, tinha um objetivo claro e bem definido. Além de agradar ao público com melodias, anedotas e ritmos de tempos passados, O Pessoal da Velha Guarda ia escrever um novo capítulo da história musical do país, contando com a participação de músicos talentosos como Benedito Lacerda, Altamiro Carrilho e Jacob do Bandolim, sob a direção musical de Pixinguinha. O programa evocava o cenário musical brasileiro do final do século XIX e início do século XX através de uma série de arranjos realizados por Pixinguinha, que permaneceram inéditos durante mais de 50 anos antes de serem reunidos na coleção Pixinguinha em pauta lançada pelo IMS em 2010.

Os maxixes, choros, sambas, polcas e tangos revelam a variedade de gêneros e ritmos que marcaram a história da música popular brasileira, bem como a importância da dança na elaboração do patrimônio musical nacional. Ao lado de músicas conhecidas, como “Corta Jaca”, de Chiquinha Gonzaga, “Turuna”, de Ernesto Nazareth, e “Conversa fiada”, do próprio Pixinguinha, o programa incluía algumas curiosidades como “La mattchiche”, uma “marcha espanhola” composta pelo francês Charles Borel-Clerc em 1905, e gravada no Brasil em 1948 com letra trilíngue, em francês, espanhol e português.

 

 

 

Segundo Almirante, a história da música era bastante simples: “Borel-Clerc, pretendendo compor um maxixe brasileiro, foi se utilizar de um dos temas mais populares de Carlos Gomes, O Guarani. E na falta de melhores dados sobre ritmos brasileiros, ele utilizou o ritmo do pasodoble espanhol”. Mas será que foi isso mesmo? Escutando bem, as semelhanças entre “La mattchiche” e o texto musical de O Guarani não são tão evidentes. Nos temas, harmonia, ritmos e orquestração, poucos são os pontos comuns entre a ópera brasileira criada no prestigioso teatro da Scala de Milão em 1870 e a cançoneta ao estilo espanhol lançada nos cabarés de Paris três décadas depois. Sobretudo não explica o formidável sucesso que “La mattchiche” obteve na Europa e na América às vésperas da Primeira Guerra Mundial, iniciando uma série de intercâmbios musicais transatlânticos, quase um século antes da descoberta da world music pelas grandes gravadoras internacionais.

 

 

 

 

A história do maxixe francês começou oficialmente em Paris em 1905, com a criação de “La mattchiche” por Félix Mayol, a grande vedete do music-hall e dos cafés-cantantes, que encantava o público com suas chansonnettes maliciosas e cômicas, cheias de duplo sentido e alusões eróticas. Anos mais tarde, Félix Mayol explicou a gênese da música no seu livro de memórias: teria ouvido a melodia durante uma turnê na Espanha e pedido a Charles Borel-Clerc para adaptá-la. Essa “marcha espanhola”, porém, não era totalmente desconhecida do público francês na época. A música original tinha sido criada no teatro Apollo de Madrid em 1895 sob o título “La Sorella”, de autoria de L. Gallini, logo depois da introdução do maxixe brasileiro em Portugal, e gravada com diferentes nomes nos primeiros anos do século XX.

Todavia, foi Félix Mayol que imortalizou a melodia. Logo depois da sua criação, “La mattchiche” tornou-se um dos maiores sucessos da indústria musical da época: com mais de 240 mil partituras vendidas, para piano, violino, orquestra ou mandolim; cinco gravações para Gramophone, Odeon, APGA e Parlophone; e a realização de um phonoscène pela cineasta pioneira Alice Guy.

http://www.youtube.com/watch?v=FL_-cq7Vs_0

Ancestral do videoclipe, o phonoscène era gravado em duas etapas (a música sob cilindre; a imagem sob película), e projetado de maneira simultânea a fim de criar a ilusão do cinema sonoro. Nesse extrato, Felix Mayol canta a parte central de “La mattchiche”:

                                                               C’est la danse nouvelle,
Mademoiselle!
Prenez un air canaille,
Cambrez la taille!

Os movimentos do corpo ilustram a letra, de maneira a ensinar a nova dança, supostamente espanhola, ao público. Aliás, as partituras de “La mattchiche” também incluíam uma “teoria da dança” por “Mr. Eugénio, mestre de balé do Alcazar d’été”, o famoso café-cantante do Champs Élysées. A coreografia comportava uma série de oito passos curiosos como “a dança das mãos”, “a chalupa” e um “movimento de flexão progressiva como se o casal quisesse sentar-se sobre um banquinho que se afastaria do seu traseiro”.

Marcha espanhola, cançoneta no puro estilo montmartrois e dança fantasista, no final, o maxixe francês, de brasileiro, só tinha o nome! Aliás, o nome mesmo passou por uma série de modificações significativas atravessando o oceano atlântico: ganhou uma nova grafia para preservar a pronúncia original, e sobretudo mudou de gênero, como será o caso mais tarde com o samba – la samba em francês.

Afrancesada e feminizada, “La mattchiche” tornou-se um clássico do cancioneiro francês, com interpretações de Mistinguett e do jovem Maurice Chevalier, e dos bailes populares, as guinguettes, retratadas pelo pintor holandês Kees Von Dongen:

 

Le Moulin de la Galette por Van Dongen (1905)

 

Todavia, a trajetória de “La mattchiche” não parou nos “faubourgs” de Paris. A partir da França, a música conquistou as principais capitais europeias e norte-americanas: na Alemanha, foi gravada pela Polyphon Record com a indicação “La machiche – Spanische Marsch” (Gallini), enquanto nos Estados Unidos foi retomada com o título original “La Sorella”.

 

 

 

 

Sucesso internacional, “La mattchiche” logo chegou ao Brasil. Em 1906, serviu de quadro para a “revista de costumes, tipos e atos cariocas” O Maxixe, criada no Teatro Carlos Gomes, no Rio de Janeiro. Em 1907, deu origem a uma sátira de grande popularidade, cuja letra evocava dois bandidos italianos, Rocca e Carleto, famosos por terem assaltado uma joalharia da capital federal.

                                                               Mandei fazer um terno
De Jaquetão
Pra ver Carleto e Rocca
Na detenção

 

Essa paródia serviu de base, anos mais tarde, para a parte em português da versão trilíngue de Pixinguinha e Almirante. Para terminar, vale lembrar o dueto interpretado pelos Geraldos, uma dupla formada por Geraldo Magalhães e Nina Teixeira, “A crítica do maxixe francês”:

 

                                                               Lá na capital da França
Onde o progresso avança
Não há francês que não capri … i ….che
Em dançar [no meio] do maxi…i…xe […]
Mas de tal forma que em riso
Transformava o piso
Ao som de tanta dissidência!

 

Concluindo, com uso amplo do duplo sentido: “Oui Monsieur, c’est très bon!”

* Anaïs Fléchet é historiadora, professora da Universidade de Versailles Saint-Quentin-en-Yvelines e autora de Villa-Lobos em Paris: um echo musical do Brasil (Paris: L’Harmattan, 2004)

 

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