Clint Eastwood e as liturgias da morte

No cinema

09.12.11

Um bom antídoto contra os blockbusters infantilizadores que inundam as telas nas férias é a grande retrospectiva dedicada pelo Centro Cultural Banco do Brasil à obra de Clint Eastwood. Na mostra, que vai até o fim do mês em São Paulo, de 13 de dezembro a 8 de janeiro em Brasília e em janeiro (do dia 13 ao 31) chega ao Instituto Moreira Salles do Rio de Janeiro, serão exibidos 42 longas-metragens dirigidos e/ou estrelados por ele.

Dos faroestes espaguete de Sérgio Leone dos anos 60 ao drama sensitivo Além da vida, do ano passado, é possível acompanhar o amadurecimento artístico e humano de Eastwood pelas mudanças no seu modo de encarar a morte.

Forçando um pouco a barra, podemos dizer que, na primeira parte da trajetória do ator/diretor, a morte era uma festa, um espetáculo, uma catarse, uma apoteose, quase uma epifania.

 

Olho por olho

Nos faroestes alheios em que Eastwood atuou, e nos primeiros que dirigiu, o assassinato do oponente era justificado pela lógica do “olho por olho, dente por dente” que predominava numa terra sem lei. Nos policiais de Don Siegel, o que legitimava o homicídio brutal era o caráter de cruzada contra o crime, de punição exemplar dos facínoras.

Essa licenciosidade homicida sustentava e condimentava o culto do herói americano com todos os seus atributos: individualista, cool, destemido, implacável, certeiro.

Pois bem. A certa altura do cinema de Eastwood, a figura desse herói monolítico começa a rachar. Seus valores tornam-se instáveis, suas certezas balançam.

A par dessa crise do herói, também a visão da morte começa a mudar, a se adensar, a ganhar peso dramático e moral.

É difícil determinar com precisão o ponto de virada desse processo. Talvez tenha sido Bird (1988), com sua escolha, como herói trágico, do grande músico negro Charlie Parker, derrotado pelas drogas, pelo racismo, pela morte da filha, por um mundo que não entendia sua arte.

Pode ser que o ponto de inflexão tenha sido Coração de caçador (1990), em que Eastwood encarnava outro de seus ídolos, o cineasta John Huston, machão como ele, mas eivado de contradições e movido por uma auto-ironia e um savoir-vivre que transcendiam qualquer maniqueísmo.

 

Autocrítica pungente

Mas o filme que, a meu ver, realiza cabalmente a transmutação humana e artística de Clint Eastwood é Os imperdoáveis (foto acima), o extraordinário faroeste crepuscular que ele dirigiu e estrelou em 1992. É impossível deixar de ver a história do pistoleiro aposentado que larga seu rancho e volta à ativa em troca de um punhado de dólares para vingar uma prostituta supliciada como uma pungente autocrítica do ator/diretor.

Algumas cenas são eloquentes, em particular aquela em que um jovem falastrão metido a pistoleiro entra numa crise agônica ao ser confrontado com a possibilidade real de matar um ser humano. Poucos momentos do cinema mostraram de modo tão vívido como é difícil, como é pesado, tirar a vida de uma pessoa.

 

A morte como fardo

Na sequência final – sangrenta, mas apocalíptica em vez de apoteótica -, o veterano Will Munny, o personagem de Eastwood, apresenta-se como alguém que matou mulheres e crianças, que matou “quase tudo o que anda ou rasteja”, como se tratasse de uma condenação, uma sina, uma maldição. É quase um fantasma surgido das trevas. Estamos longe da violência festiva e automática dos filmes dos anos 60 e 70. Aqui, essa cena terrível e admirável:

 Daí para a frente, multiplicam-se no cinema de Clint Eastwood os momentos em que a morte é retratada quase como um ritual às avessas, uma passagem tão dolorosa para quem a sofre como para quem a causa.

Se, nos faroestes e policiais do jovem Eastwood, a morte era uma explosão espetacular, nas obras mais maduras ela é como uma implosão, um abismo silencioso de dor e culpa, sem direito à catarse.

Chamo a atenção para apenas dois exemplos, talvez os mais belos em sua tensão quase insuportável. O primeiro é o momento de Sobre meninos e lobos (2003) em que, num cais de rio, um homem sacrifica (como numa cena bíblica) seu amigo de infância, por julgar que este violentou e matou sua filha.

O outro rito de morte, ainda mais complexo do ponto de vista moral, está no final de Menina de ouro (2004), e quem não quiser saber o desfecho do filme deve parar por aqui. Na cena em questão, movido pela compaixão mas também pela culpa, o treinador de boxe Frank Dunn (Eastwood), como um anjo da morte, esgueira-se pelas sombras de um hospital deserto para abreviar a vida infeliz de sua pupila (Hillary Swank), que jaz imobilizada numa cama. Aqui, o terrível pedido que ela lhe faz e do qual ele procura escapar, trazendo no rosto a angústia, o sofrimento e o cansaço de quem já matou gente demais.

Era quase lógico que, aos 80 anos, o passo seguinte desse artista atormentado pela morte fosse um mergulho na descabelada esperança humana de descobrir e explorar o que existe além da vida.

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