Coletores de informação

Literatura

14.10.13

 

(Divulgação/Renato Parada)

(Divulgação/Renato Parada)

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Um sujeito, apontado simplesmente como “o estudante de chinês”, está prestes a embarcar em um dos voos que o levarão para Xangai. Resolveu aprender o idioma por considerá-lo a língua do futuro (ou porque “[sua] própria língua não dá conta do que tem a dizer”), mas não é bem por isso que decidiu ir à China. Fica claro que o protagonista de Reprodução, o novo romance de Bernardo Carvalho, deseja esquecer a ex-mulher, de quem está divorciado há seis anos. Sua vida carece de sentido ou rumo. Na fila do check-in, encontra por acaso sua ex-professora de chinês ? uma moça que, sem qualquer explicação, abandonou o aluno no meio da lição 22 do quarto livro do curso intermediário, como ele não cessará de repetir ao longo do livro. De mãos dadas com uma criança que não parece ser sua filha, a professora, nascida no sul da China, fica desconcertada com o encontro inesperado. O estudante de chinês, por outro lado, está ansioso por descobrir os motivos que a levaram a deixar abruptamente a escola de idiomas. Não há tempo para uma conversa: a professora é abordada por um policial federal e forçada a acompanhá-lo. Em seguida, o estudante de chinês é detido e levado para interrogatório. É numa sala sem janelas que ele começa a despejar, sem outro motivo que não o nervosismo e a própria estupidez (e diante de um policial estupefato), uma enorme quantidade de abobrinhas homofóbicas e racistas. O que seria um diálogo vira um confuso monólogo, uma vez que o leitor não tem acesso às respostas do interlocutor.

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O estudante de chinês é caricato, mas não a ponto de perder a singularidade. Nascido em 1960 (como Bernardo Carvalho), e distante de integrar, portanto, a geração para quem a informática sempre constituiu uma realidade inescapável, o personagem é um bom representante dos comentaristas de internet. Acompanha os colunistas conservadores e sua verborragia não muito coerente. Lê notícias com avidez, mas evidencia que ler e assimilar são coisas completamente distintas. O tipo é bem conhecido ? é aquele que consegue dizer, sem esboçar o menor sinal de compreender a incongruência, frases como esta: “Não sou racista nem preconceituoso. Só não gosto do que é errado”. Ele não percebe as contradições e as armadilhas das próprias afirmações: “Não tenho preconceito nem contra preto, quanto mais contra judeu, que em geral é branco”. Extrapola o nonsense a ponto de soar engraçado, mas também causa um incômodo imenso. O estudante de chinês tem ideias peculiares e que carecem de sentido sobre como o mundo funciona ? algumas lembram uma teoria da conspiração de fabricação própria, uma mistura absurda de imbecilidades lidas ou ouvidas em diversos lugares. A confusão com a Polícia Federal não só atrasa seu embarque como ameaça impedi-lo, o que faz com que o sujeito fique ainda mais exaltado e propenso a proferir, entremeadas de palavrões, todo tipo de atrocidades.

Fica claro nesse primeiro diálogo-solilóquio do estudante de chinês: Bernardo Carvalho constrói uma inteligente sátira da era da hiperinformação.

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Seu discurso é caótico. Uma busca tão desenfreada ? e irônica ? por conhecimento fez, aparentemente, com que o sujeito ficasse um tanto confuso. “O homem, coletor de comida, reaparece de maneira incongruente como coletor de informação”, escreveu Marshall McLuhan, teórico da comunicação, em 1967. E completou: “Nesse sentido, o homem eletrônico não é menos nômade do que seus ancestrais paleolíticos”. Da segunda metade da década de 1960 para cá, é evidente, as coisas ficaram mais complicadas. “Muita informação. Ninguém aguenta”, desabafa o estudante de chinês. O protagonista de Reprodução é um dos típicos usuários, ou vítimas, da internet. “Eu sempre escrevo pra seção de cartas do leitor. Eu também tenho um blog. Estou no Facebook. Tenho muita opinião. E seguidores”, diz ele.

O problema da informação (sua produção e consumo) é um dos tópicos centrais do livro de Bernardo Carvalho. Ter uma opinião formada é, para o protagonista, um imperativo. De forma original ? através da verborragia do estudante de chinês, mas sem penetrar na sua consciência confusa ?, o autor expõe o que David Foster Wallace chamou de Ruído Total: “O tsunami de fatos, contextos e perspectivas disponíveis”.

Apesar do humor indiscutível, Reprodução abraça com força o pessimismo. O tom é tragicômico e  às vezes simplesmente sarcástico. Nesse sentido, o romance lembra um poema de T.S. Eliot: “Onde está a sabedoria que perdemos no conhecimento?/ Onde está o conhecimento que perdemos na informação?”. Ou Bertolt Brecht, que diz, desolado, logo depois do surgimento do rádio: “Um homem que tem algo a dizer e não encontra ouvintes se vê em má situação. Mas pior ainda é a situação dos ouvintes que não conseguem encontrar ninguém que tenha algo a lhes dizer”. Esses excertos foram retirados do excelente A informação, resultado de uma exaustiva pesquisa do jornalista norte-americano James Gleick. A pesquisa de Gleick dialoga com a narrativa caótica de Reprodução, mostrando que a variedade e o excesso de dados ? e a dificuldade de encontrar um filtro adequado ? alcançaram níveis alarmantes.

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A conversa entre investigador e investigado é interrompida de maneira abrupta. Depois de deixar o estudante de chinês no tal cômodo sem janelas, o policial se dirige à sala ao lado ? palco do segundo diálogo-solilóquio do livro. Agora é a vez de uma delegada da Polícia Federal encher os ouvidos cansados daquele que passa a ser o interlocutor comum. A dinâmica é idêntica: tirando umas poucas frases ditas no final, o leitor só tem acesso ao discurso da mulher. É possível intuir as respostas dadas pelo policial, nada mais. Essa segunda parte é, pelo menos no início, um tanto desconexa. Não é possível compreender imediatamente a situação ? em que confusão os policiais estão metidos e o que ela tem a ver com o estudante ou com a professora de chinês. Uma vez que os esclarecimentos são entregues em doses homeopáticas durante o falatório da delegada, não é possível revelar muito sem estragar a graça da coisa. É uma boa sacada de Bernardo Carvalho: através da conversa, que para ele é unilateral, o leitor monta a trama de Reprodução aos poucos. Descobre, assim, o motivo pelo qual a delegada está agitada (o que está diretamente ligado ao seu envolvimento com uma igreja evangélica que ela deveria investigar, mas passa a frequentar). Descobre o drama da professora de chinês. Descobre a bizarra história pessoal do policial-interlocutor. Detalhe: quase não há ação direta. A maior parte dos acontecimentos está contida nos confusos discursos, como que ampliando o incômodo ? e as possibilidades ? da própria literatura.

Nada é muito ortodoxo em Reprodução. Bernardo Carvalho arrisca, mas acerta o alvo. Como o título adianta, reproduz com maestria a cacofonia de vozes do mundo moderno.

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Enquanto pula de um assunto a outro com facilidade ? e sem se preocupar em arranjar uma conexão entre eles ?, a delegada toca na questão já levantada pelo estudante de chinês. “Não é melhor passar o tempo com informação?”, pergunta ao colega. Está claro que a informação, no romance, é um paradoxo: para alguns, de modo geral, é um mero passatempo; para outros, pelo contrário, é uma obrigação.

Os idiomas, com suas singularidades e impossibilidades, também são elementos-chave da narrativa ? o que evidentemente dialoga com a superoferta de informação e com nossa capacidade, limitada, de compreender o outro. “Imagina uma piada. Se eu conto uma piada e você não entende. Ainda é piada? Posso dizer que a gente ainda fala a mesma língua? (…) Quando tenho que explicar que estava sendo irônica, ainda é a mesma língua?”, pergunta a mulher. A resposta está no próprio romance: mesmo os personagens que têm o português como língua materna não conseguem entender o sentido do que o outro diz.

Nem só dos problemas relativos ao conhecimento vive Reprodução: mesmo que os tangencie sem se aprofundar, Bernardo Carvalho traz à tona outros distúrbios da época.

Dividido em três partes ? na última, o estudante de chinês retoma a palavra ? Reprodução é como as comédias incas às quais a delegada se refere ? e que, segundo um livro que ela brande diante do colega, “baseavam-se no diálogo”. “Mas em um diálogo no qual só um dos lados tinha o direito de falar”, diz ela.

O leitor emerge um tanto atordoado ao final das duzentas páginas ? claro, são dois enormes solilóquios disfarçados de diálogos, com raras e abençoadas intervenções de um narrador em terceira pessoa. As repetições são frequentes e o ritmo é vertiginoso. Bernardo Carvalho definitivamente não fez muitas concessões.

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O que Bernardo Carvalho propõe, em último caso: não é preciso assimilar para reproduzir ? de informações a comportamentos. Sequer é preciso ter um propósito definido para reproduzir. Talvez estes sejam, mais do que os anteriores, tempos de mímeses autômatas.

No meio de uma conversa que não tem rumo ou propósito definido, a delegada diz para o colega, referindo-se a livros de ficção: “Basta eu entender qual é a do personagem pra perder o interesse”. Boa notícia para o leitor que concorda com essa sentença: na medida em que é absolutamente impossível prever ou sacar qual é a dos personagens de Reprodução, o interesse será mantido.

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