David Foster Wallace e LCD Soundsystem – por Antônio Xerxenesky

Música

17.11.11

Comparações entre literatura e música costumam acontecer em dois espaços: em artigos sérios e detalhados publicados na área de Literatura Comparada ou em relações estapafúrdias traçadas em mesas de bar (“Qual é o Beatles da literatura?” / “Qual é o Shakespeare da música?”). Ao escrever este artigo, muito provavelmente estarei mais próximo da mesa de bar do que do artigo acadêmico (devido ao espaço, tempo de produção etc.). Pouco importa. Gosto de pensar que existem textos que lançam a bola no ar para outra pessoa saltar e cortar. Este é um deles. Também peço perdão por começar com um parágrafo tão autoconsciente. Não se preocupe: tem um motivo para isso.

Sem mais delongas, vamos lá: David Foster Wallace e LCD Soundsystem. Quem? David Foster Wallace (conhecido pelo acrônimo de DFW) é um escritor norte-americano que nasceu em 1962 e se suicidou em 2008. No Brasil, seu único livro traduzido até o momento é Breves entrevistas com homens hediondos, embora a Companhia das Letras tenha anunciado que publicará uma coletânea de ensaios dele em 2012 (e, para mim, é nos ensaios que Foster Wallace realmente brilha) e o gigantesco Infinite Jest em 2013. Já LCD Soundsystem é um projeto musical de James Murphy, que estreou em 2002 e terminou neste ano de 2011, com uma sequência de shows impressionantes pelo mundo todo (inclusive no Brasil). O que os dois têm em comum? Ambos os projetos são amplamente admirados por jovens na faixa dos trinta anos, os dois são queridinhos da crítica especializada, é comum ver DFW e LCD Soundsystem sendo catalogados como pós-modernistas (ainda que muita gente não acredite que exista tal termo), e – é aqui que entra minha participação – ambos estão unidos por lidarem com a autoconsciência.

 

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Fredric Jameson, teórico de filiação marxista, aponta que a principal marca do pós-modernismo (para além das explicações sociológicas) é a fusão da alta e baixa cultura no mesmo tecido narrativo. Ao contrário de Joyce, em que a baixa cultura aparece apenas em citação, nas obras do pós-modernismo, há uma mescla indissociável das duas, rompendo, enfim, as barreiras que separavam a cultura de massa da cultura erudita. Foster Wallace é um caso paradigmático: incorpora, por exemplo, o seriado M*A*S*H como peça fundamental de seu Infinite Jest. LCD Soundsystem não fica muito atrás, iniciando seus shows com uma execução da breguíssima canção “I’m not in love”, do grupo 10cc.

No entanto, compartilho mais da visão das teóricas Linda Hutcheon e Patricia Waugh, no sentido de que vejo a autoconsciência como uma característica importantíssima dos artistas de nosso tempo. A autoconsciência se dá em dois planos no caso de Foster Wallace: formal (por meio da metaficção, i.e., um dispositivo narrativo que expõe a ilusão da ficção, no qual o texto revela estar consciente de que aquilo é algo ficcional) e no âmbito dos personagens (os personagens de DFW têm dificuldades de se adaptar à vida por estarem sempre conscientes de suas próprias ações e pensamentos). Exemplificando: em Westward the course of empire takes its way, novela de DFW, o narrador não apenas expõe que aquilo é uma história de ficção, como tenta interpretar as relações entre aquela história e o texto central do pós-modernismo americano, Lost in the funhouse, de John Barth. Já no território dos personagens, temos Drew-Lynn, aspirante a escritora que conta aos sete ventos que é uma “pós-modernista”, enquanto o narrador reflete que não deve fazer isso, pois soa “pomposo e idiota”. Os pós-modernistas realmente “bacanas” (aspas irônicas) sabem que são, mas fingem que não são. Ou seja: o rito da vida contemporânea envolve não apenas saber quem você é, mas também artificialmente criar uma imagem de ser outra coisa. Receita óbvia para a neurose.

O sofrimento causado pela autoconsciência está apresentado de forma muito mais dramática no ensaio sobre a tenista Tracy Austin. Neste, DFW diz ter ficado decepcionado com a leitura da autobiografia da tenista: ela só pensa em clichês! Coisas como: “uma bola de cada vez”, “preciso dar o melhor de mim” e frases nessa linha. O autor reflete, então, que parte de seu fracasso no tênis talvez derive do fato de que ele sofria muito com a autoconsciência e ficava paralisado em qualquer jogo frente a um público. Ele perdia-se em pensamentos acerca de como era visto e como suas ações seriam interpretadas e isso o impedia de apenas se concentrar no jogo. A genialidade dos atletas estaria, portanto, em deixar-se levar, em esquecer-se.

Nas músicas da banda LCD Soundsystem, a autoconsciência também age em dois planos. Por um lado, temos as canções que parecem comentar a si mesmas, como “Daft Punk is playing at my house”, um hino sobre a fusão entre rock e música eletrônica, ou “You wanted a hit”, sobre como a banda nunca conseguirá emplacar um hit radiofônico: eles são estranhos demais, suas canções são muito longas…

“Losing my edge” é um caso interessantíssimo. Quando executa a canção ao vivo, James Murphy adota um estilo de “stand up comedy”, andando pelo palco e praticamente lendo a letra, como se contasse piadas. A letra versa sobre como ele está perdendo o lugar para os jovens, que agora escutam outras coisas e não dão mais a mínima para as bandas que foram importantes para a sua formação. No decorrer dos oito minutos de música, Murphy passa a gritar, cada vez com mais desespero, que ele “estava lá”, que ele viveu aquela época.

Já “Drunk girls”, canção um tanto pobre em termos musicais, se comparada com o resto da obra do LCD Soundystem, traz uma letra com um tipo de autoconsciência digna de um dos “homens hediondos” de Foster Wallace. Nela, o narrador reflete sobre toda artificialidade que está envolvida nos rituais de flerte nas festas e discotecas. Para se relacionar com uma garota, há muito fingimento em jogo, ao mesmo tempo em que é necessário acreditar em algo. Ele clama por honestidade (se não for machucar, ainda vale a pena?), mesmo sabendo que não a obterá. É aí que reside o caráter tragicômico da canção: em um ambiente mergulhado em ironia e artificialidade, como podemos ser sinceros?

 

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Tanto David Foster Wallace como LCD Soundsystem seriam artistas irrelevantes se fossem meros diagnosticadores de um mal da época. Se há algo que os salva disso, é o fato de que não apenas utilizam a autoconsciência como recurso estilístico, parando por aí. A busca pela transcendência (ainda que esta nem sempre seja alcançada) os retira do lodaçal pós-modernista.

O dilema de DFW reside em como compor um texto que ao mesmo tempo reconheça as inovações formais dos modernistas sem esquecer as grandes questões morais dos realistas do século XIX. O dilema de James Murphy, do LCD Soundsystem, está em criar canções que falem ao coração do ouvinte, lutando com todas as unhas contra a autoconsciência paralisante de um artista que sabe muito bem que suas canções são mesclas calculadas de suas influências musicais e que utilizam recortes de outros músicos.

São dois artistas, enfim, que merecem ser lidos e ouvidos, não apenas porque captaram o zeitgeist, mas porque possuem coração, porque mantiveram seus sentimentos, apesar de tudo que conspira contra isso, apesar da ironia sobrepujante e da horrorosa autoconsciência. Parece uma opinião brega, e talvez seja. Foster Wallace disse, no ensaio E Unibus Pluram, que os próximos rebeldes literários serão antirrebeldes: os que arriscarão ser tachados de melodramáticos e sentimentaloides. James Murphy não apenas repete isso, mas também executa algo similar em “Dance yrself clean”, canção que abre o seu disco de despedida do mundo da música, na qual aumenta o volume e pede para o ouvinte se lavar dançando, como se a dança fosse uma espécie de exorcismo que pudesse nos salvar de tudo, inclusive de nós mesmos.

* Antônio Xerxenesky é autor de A página assombrada por fantasmas (Rocco, 2011). O autor agradece a Vinicius Castro pela sugestão de bibliografia e a Tiago “Duc” por ter viajado de Salvador a Porto Alegre para assistir ao show do LCD Soundsystem.

** Na imagem da home que ilustra este post: James Murphy no clipe da  música “Losing my edge”

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