De falsificações e falsificadores

Correspondência

29.08.11

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Que há arte demais no mundo, isso nem se discute, Zé Geraldo, uma verdadeira poluição, verbal, sonora e visual, que as facilidades do acesso à internet só fizeram aumentar e muito, mas tal fato me leva a outro aspecto da questão que é o reconhecimento do verdadeiro artista. Falo aqui daqueles recusados num primeiro momento e que, com o passar do tempo, às vezes até quando já morreram, são percebidos como os grandes artistas que verdadeiramente foram. Aliás, seria interessante montar uma galeria póstuma dos recusados pelo bom gosto do burguês, da classe média e do academicismo, tendo como patrono Van Gogh. E os impressionistas que, agora, passado mais de um século, são intocáveis, dando nome até a edifícios no Rio, em São Paulo e toda a parte? Eu mesmo moro num edifício Renoir e, se já achava o pintor enjoadinho em sua beleza, agora o considero insuportável, de tanto cruzar com a reprodução de um de seus quadros na portaria do meu prédio.

Suponho também que haja algum edifício Pablo Picasso, como há um automóvel Citroen Xsara Picasso, a fama do artista ultrapassando a desconfiança dos bem-pensantes no que toca pelo menos às obras menos transgressoras do genial espanhol. O pessoal gosta mesmo é do Picasso da fase azul, assim como admira o Cristo de Salvador Dalí. Queria ver se algum incorporador teria coragem de colocar na portaria de um prédio, do mesmo Picasso, o Nu na cadeira de braços, esse misto de cubismo, audácia e paródia erótica e senso de humor.

Isso tudo me faz pensar em Andy Warhol, o astro da arte pop e em seu apadrinhado Jean-Michel Basquiat, o grafiteiro de ascendência haitiana que galgou os mais altos degraus da fama nessa Meca ocidental que é New York. É bem possível que você tenha assistido, Zé Geraldo, ao filme Basquiat, em que Andy Warhol é encarnado por David Bowie. Neste filme há um momento em que Warhol-Bowie diz assim, não sei a quem: “Não sei mais do que gosto, do que não gosto”, uma grande boutade neste mundo contemporâneo em que testemunhamos a transgressão da transgressão da transgressão.

Voltando aos edifícios, no Rio, ali na praia do Flamengo, há um trio de prédios com os nomes de Valéry, Mallarmé e Baudelaire. Terão noção as famílias que ali moram de quem são os ilustres patronos de seus lares? Saberão que Baudelaire, além de usuário de drogas, escreveu os satânicos poemas das Flores do mal? E que Mallarmé escreveu o poema constelacional Um lance de dados, que transformou para sempre a poesia?

Mas esta carta, não devo me esquecer, trata de falsificações na internet, e uma que pegou mesmo foi a de García Marquez, acometido de doença incurável, dizendo-se arrependido por não ter sido mais feliz, mais ou menos a mesma queixa de um falso Borges. Vou lhe confessar uma coisa, Zé: quando a coisa é bem-feita, eu acho graça e posso até cair numa delas.

Orson Welles, você sabe melhor do que eu, fez um filme interessantíssimo, no Brasil intitulado Verdades e mentiras, um falso documentário tendo como personagem o falsificador de arte fictício Elmyr de Hory, que vivia de pintar Picassos, Van Goghs e outros. Mas o ápice mesmo de Welles foi seu programa radiofônico que noticiava a invasão do planeta por extraterrestres. Ele se baseou no livro de H. G. Wells, A guerra dos mundos, mas o caso é que uma multidão de gente acreditou no programa de OW, até mesmo gente do governo e das forças armadas. Tanto é que a emissora teve que colocar no ar vários desmentidos.

De novo os edifícios e as artes plásticas. Duvido muito que alguém tivesse a coragem de batizar um prédio de Marcel Duchamp, até mesmo porque sua transgressão incomoda até hoje. Mas fico aqui pensando se uma incorporadora teria a audácia de colocar na portaria do edifício uma réplica do Nu descendo a escada, de Duchamp, que escandalizou a cena nova-iorquina no princípio do século 20, aliás a época em que a arte verdadeiramente foi revolucionada.

Você já deve ter notado que sou fã de uma arte transgressiva, mas seria a falsificação uma transgressão? Às vezes sim, é o que penso, o problema é que a maior parte dos falsários da internet são medíocres e, como você disse, adoram um texto de autoajuda.

Mas vale a pena contar um caso. Pelos bares de BH, na década de 70, havia um sujeito apelidado de Makario, que vivia tirando poemas seus do bolso e mostrando às pessoas nos bares, que mal continham a impaciência e achavam os poemas muito ruins. Mas não é que o Makario um dia saiu mostrando um poema de Drummond, dizendo que era seu e todo mundo continuou a detestar. Noutro dia, mostrou um poema seu e disse que era de Drummond e muita gente não só acreditou, como gostou. Pelo menos foi o que me contaram, não fui testemunha ocular da história.

Mas vou terminar com uma história absolutamente verdadeira. Há artistas, você sabe, que criam um estilo tão próprio e sedimentado que acabam virando clichê. Nos Estados Unidos, todos os anos, existe um Concurso Hemingway. O candidato que escrever o melhor conto de Hemingway, escolhido por um júri de especialistas, ganha passagem e estadia, com acompanhante, para beber num bar e comer num restaurante em Madri (ou em Paris, disso não tenho muita certeza), outrora frequentado por Hemingway, consumindo tanto a bebida como a comida ao gosto do escritor americano, conforme suas reportagens e livros. E se alguém achar que estou eu falsificando, é só procurar este concurso na internet que acabará achando.

Dito isso, Zé Geraldo, aqui me despeço, com o abração de sempre.

 

Sérgio.

 

* Na imagem da home que ilustra este post: detalhe da tela Cristo crucificado (1954), de Salvador Dalí

 

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