Desvarios no metrô

Correspondência

19.03.12

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JP,

Agora a demora em responder foi minha ? mas eu também tenho minhas desculpas. Andei enrolado, não em expedições fluviais, mas em prazos, trabalhos, leituras, o diabo. Não é bolinho voltar a ser estudante, ainda mais numa língua que não é sua. Tudo é mais lento. Tudo se arrasta. As pessoas dizem “ah, mas você mexe com literatura, deve ser mais fácil pra você”. Não é. Não tem saída: ou a gente liga o Joel Santana que existe dentro de nós, ou fica batendo cabeça feito um chimpanzé mal treinado.

Sensacionais os teus vídeos, meu. Aquele do rio é particularmente bonito. Fiquei vidrado no barquinho levando uma montanha de batatas, o que aliás é bastante revelador da minha relação com o Oriente. Não por acaso, um dos meus lugares preferidos em Chicago é o Ben’s Noodles, o restaurantinho tailandês aqui da esquina, cujo curry verde de camarão não cansa de me fazer chorar. Gosto de mergulhar um punhado de arroz no caldo e deixar aquilo se transformar numa massa fumegante ? e então botar tudo pra dentro. Pura alegria. E custa inverossímeis sete dólares.

O Ben’s fica na avenida Bryn Mawr, que também batiza a nossa modesta estação de metrô. (O nome significa “grande colina” em galês, o que é meio estranho porque Chicago é uma planície infinita.) É ali, naquela plataformazinha estreita de madeira, que meus dias têm início. Como todos os sistemas de transporte público do mundo, o metrô de Chicago tem personalidade própria, uma vida que independe da cidade que corre lá embaixo. Sim: embaixo. Por algum motivo que está além da minha escassa compreensão, a maioria das estações de metrô em Chicago é suspensa, uma ideia duvidosa se considerarmos que a cidade tem oito meses de frio por ano.

Os trens são velhos e sujos. Copos de papelão e restos de comida rolam pelo chão dos vagões, e é comum que os assentos estejam melecados de alguma substância misteriosa. O curioso é que a cidade é relativamente limpa ? o metrô é que parece liberar os instintos poluidores dos nativos.

Não só esses instintos, na verdade. Nunca vi tanta gente falar sozinha quanto no metrô daqui. É um palestrante por vagão, no mínimo. Outro dia trombei com um homem segurando uma garrafa de água como se fosse um telefone, fazendo um longo relato de como tinham sido as férias dele na Califórnia. Já vi uma mulher discutindo longamente a relação com o namorado, com o detalhe de que o namorado não estava presente. O tipo mais comum é o murmurador, que parece encantado pelo fluxo da própria consciência, mas indeciso sobre a divulgação do material.

Mês passado eu tava no metrô indo pra faculdade quando notei um cara sentado a alguns metros de mim, virado na minha direção. Devia ter uns 60 anos, calça de moletom, blazer amassado, barba por fazer ? era uma espécie de Godard mais novo e usando Asics. Os bolsos do blazer estavam abarrotados de objetos, a ponta de uma sacola plástica escapando de um deles. Percebi que o sujeito não batia bem e evitei fazer contato visual, voltando minha atenção pro livro que eu tentava terminar de ler. Mas então reparei que ele me encarava e, com raiva, balbuciava uns palavrões. Por um momento me perguntei se devia fazer alguma coisa, talvez perguntar qual era a dele ou simplesmente me levantar e mudar de lugar. Não fiz nada. O vagão estava quase vazio, eu não tinha pra onde correr, e por uns momentos fiquei paralisado, ouvindo o maluco rosnar na minha direção, experimentando a raiva que ele sentia de mim, ou do que quer que eu representasse na cabeça dele. O metrô parou na conexão, todo mundo desceu e ficou esperando o outro trem chegar. Me afastei um pouco do cara e tentei voltar à leitura. Não consegui, é claro. Quando voltei a olhar, ele tinha esquecido de mim, e brincava com um ioiô colorido que tinha tirado do bolso.

Passei uns dias pensando no que me aconteceu. Na hora, enquanto eu ouvia o sujeito me destratar, fui inventando uma série de desfechos possíveis pro incidente ? um deles incluía traumas de guerra e uma pistola semiautomática, entre outros lugares-comuns. Mas como é que eu podia prever o ioiô? Aquilo deu ao meu agressor uma doçura insuspeitada, e por um momento tive vontade de voltar no tempo, levantar do meu assento e tascar-lhe uma beijoca na testa. Não teria sido uma boa ideia.

Onde andará você neste momento? Acho que não me surpreenderei com nenhuma resposta. Aliás, você conta que os adivinhos te dizem sempre a mesma coisa, o que provavelmente revela mais sobre os adivinhos do que sobre o teu destino sobre a Terra, mas agora eu fiquei curioso. Desce do camelo, por favor, e pede pro guia butanês te emprestar uma caneta. Abre esse coração. Eu juro que não vai doer.

Abraço,

Chico

* Na imagem da home que ilustra esse post: fotografia de Dave Tamburo

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