Diário do Forte de Papelão

IMS na Flip

01.07.16

Por trás de sua fortaleza de caixas de papelão, o escritor e tradutor Daniel Pellizzari, da Coordenação de Internet do IMS, arrisca um diário pessoal com o que lhe vem à cabeça durante a Festa Literária Internacional de Paraty e descobre, enquanto desempenha suas múltiplas funções no evento, que não há tempo para a introspecção na Flip.

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Quarta, 29/6

19h28. Toda Flip começa na estrada, e se consolida ao primeiro tropeço no calçamento lindo e letal do Centro Histórico de Paraty. Mas a estrada: quase nunca é fácil, ainda mais para quem nutre pelo estado “passageiro de automóvel” o mesmo pavor atávico que muitos reservam a “passageiro de avião”. Mas desta vez foi, uma viagem de fato muito fácil, tranquila e agradável em companhia da colega de IMS Joana Reiss Fernandes, mesmo com a descida noturna e brumosa da serra. Todas as calotas sobreviveram. O único resquício de tensão foi reservado a um debate íntimo sobre o que leva alguém a criar um restaurante especializado em picanha e truta, conforme anunciava a placa mais interessante avistada no trajeto. Todavia foi uma tensão breve, pois a Flip começa na estrada, e eu já estava na Flip, e já estava trabalhando, e não há tempo para a introspecção se você está na Flip e está trabalhando.

19h52. Depois de enfim obter minha credencial azul, que batizo imediatamente de “Poder Moderador” porque em Paraty isso me parece fazer todo o sentido do mundo, adentro a conferência de abertura da Flip. Provavelmente será a única mesa do evento que terei tempo de assistir. Cheguei tarde em Paraty, a mesa está terminando, saúdo minha ex-namorada mais recente e ouço mas não vejo Armando Freitas Filho dizer a Walter Carvalho algo como “nunca alguém olhou pra mim por tanto tempo, nunca olhei tanto tempo para alguém”. Achei bonito: tornadas recíprocas pela vírgula, duas frases que isoladas poderiam falar de algo muito terrível.

20h49. Deitado na cama da pousada, me ocorreu que a frase “eu era bem jovem quando minha mãe nasceu”, proferida por mim durante a viagem em conversa com Joana, tão segura ao volante, talvez contivesse um recado interessante do meu inconsciente, e que valeria a pena matutar a respeito. Mas não cheguei a conclusão alguma. Meu corpo riu do meu despeito, retrucou com “não há tempo para a introspecção na Flip” e se botou a dormir, e eu dormi.

 

Quinta, 30/6

3h48. Meu corpo acordou de um sonho no qual eu mediava a mesa que de fato, salvo colapso nervoso, crise aguda de pânico, covardia patológica, pusilanimidade ou intervenção divina de qualquer panteão, devo mediar esta noite na Tenda dos Autores. No sonho eu fazia a Irvine Welsh e Bill Clegg duas perguntas que não estão no roteiro que preparei. Anoto as perguntas, são boas. Depois tento botar o corpo para dormir porque três e tanto da madrugada ainda é muito cedo, e o dia amanhã será longo e cansativo, mas (rogo perdão pelo spoiler, esse pecado capital da internet) só vou conseguir fazer isso daqui a duas horas.

7h51. Acordamos, eu e meu corpo. Paraty está nublada mas, tudo indica, continua no mesmo lugar.

9h02. Não houve tempo para a introspecção entre o café da manhã e a chegada na Casa do IMS. Estão muito bonitas a exposição da Ana Cristina Cesar, o Paginário, a Casa inteira. Todo mundo trabalha tanto para que tudo corra tão bem, e corre. Não há tempo para a introspecção todavia, pois há tanto a fazer, e subo ao mezanino, meu lar durante a Flip, monto meu escritório no cantinho usando caixas de papelão e gritando quietinho coisas como “internet de guerrilha!” e “shitty battlestations!” porque agir com maturidade exige um tanto de introspecção, aquela coisa para a qual não há tempo por aqui. Assumi meu posto, trabalhei bastante, subi e desci com insistência as escadas que levam ao mezanino, tomei mais café do que seria recomendável por qualquer profissional da área médica.

13h12. Pratico o tabagismo num banco em frente à Casa do IMS, na outra mão um bloquinho e uma caneta como sinalizador internacional de que ali está alguém que busca tempo para a introspecção. Mas não há tempo para a introspecção, há um vendedor de artesanato diante do banco, vendendo seu produto, e outro vendedor de artesanato que se aproxima desse primeiro, e que pelo sotaque parece uruguaio, e os dois se botam a conversar, e aprendo que entre vendedores de artesanato, uma categoria muito inquieta e mais insistente em sua itinerância que Álvar Núñez Cabeza de Vaca (sobre quem o leitor deve pesquisar, caso não saiba de quem se trata nem conheça os feitos, e prometo que valerá a pena), entre vendedores de artesanato é praxe o escambo, meu objeto por seu objeto, esta matéria-prima que desencavei ali por esta que você garimpou acolá, e fico sabendo que um dente de onça vale dois dentes de crocodilo e quatro de tamanduá.

15h22. Caiu o sinal de internet na Casa, e sem internet não posso trabalhar. Para resetar o roteador, se mostra necessária a contratação de um espeleologista mobiliário. Ele é pequeno em estatura e imenso em eficiência.

18h28. Sérgio Alcides lê o poema “Drácula” de Sebastião Uchoa Leite, em conversa com Alice Sant’Anna. Cerca de quarenta e três minutos antes disso, durante conversa entre Laura Liuzzi e Walter Carvalho, um morcego voou ensandecido (melhor seria dizer “alterado e loucão”, mas estou tentando a sobriedade descritiva) pela Casa do IMS, insistindo em rasantes próximos das cabeças do público presente.

22h46. Mediar uma mesa na Tenda dos Autores é como ser esbofeteado por uma parede. Você luta para não se afogar em um oceano de expectativa que se estende por todos os lados e em todas as direções e não há, mesmo, tempo para a introspecção.

 

Sexta, 1/7

0h18. A tradicional festa da Companhia das Letras, que está completando três décadas. Saúdo minha ex-namorada mais recente e peço um drinque no balcão apenas para ter um ponto de apoio, um drinque é uma bengala líquida e refrescante, não vou de fato ingerir aquilo, estou na Flip e estou trabalhando. Peço um drinque e não uma água porque ninguém pergunta por que você está com um drinque na mão, numa festa um drinque é invisível. Água pode ser insípida, inodora e incolor mas não tem nada de invisível, ao menos aqui, em uma ocasião festiva onde as pessoas querem relaxar após um dia de muito trabalho. Haveria perguntas e comentários e ao fim de um dia como este toda invisibilidade é bem-vinda, então fico empunhando meu drinque. Funciona, não há perguntas. Há ruído, muito, e luzes piscantes, e beijo a calva suada de meu editor, amigo e irmão André Conti, que é uma pessoa tão generosa. O escritor Michel Laub está animado e severo, o editor Leandro Sarmatz guincha em falsete quando, gentil, tento massagear seus ombros porque ele parece tão cansado. Exaustão é bem pior que álcool.

1h36. No trajeto de volta para a minha cama na pousada, enfim tropeço em uma pedra do calçamento do Centro Histórico. Paraty consolidada, extraio as roupas do corpo, despenco na cama e para pegar no sono tento pensar nas atrocidades banais que a gente comete para seguir existindo, nas coisas belas e frágeis que a gente mata para se nutrir. Não houve tempo.

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