Divergências à parte

Fotografia

31.03.16

Em artigo publicado no matutino carioca Diário de Notícias logo após a morte trágica de Luciano Carneiro, o também jornalista Hélio Fernandes, na época aos 38 anos, não deixou de registrar na homenagem emocionada de seu texto as divergências que mantinha com o ‘coleguinha’ morto sobre os caminhos e descaminhos do jornalismo. No debate a respeito que durou anos entre eles, Hélio não conseguiu impor a Luciano (foto) sua convicção de que “jornalismo é informação, mas é também e principalmente opinião”.

 

retrato de Luciano Carneiro em 1954

 

O fotojornalista, cujo trabalho de correspondente internacional da revista O Cruzeiro segue em exposição no centro cultural do IMS Poços de Caldas, após uma temporada no IMS São Paulo, acreditou até o fim que jornalismo e política não deviam se misturar nunca. A discussão continua atual – talvez agora mais que nunca –, mas houve um tempo na virada dos anos 1950/60 em que divergências do gênero eram tratadas com mais respeito pelas ideias do outro, como transparece o artigo aqui transcrito sob a assinatura de Hélio Fernandes:

Em primeira mão

Hélio Fernandes

Luciano Carneiro perseguia o êxito, mas não se importava com o sucesso. O que lhe interessava, o que o empolgava, e se transformava na sua preocupação máxima, era a missão cumprida. E nisso ele nunca falhou. Aparecendo profissionalmente num meio deformado pela ambição e glória do sucesso a qualquer preço, num meio que exigia como norma de conduta que os repórteres atropelassem os paginadores para conseguirem destaque para seus próprios nomes e fotografias em prejuízo do assunto, Luciano, sem alarde, sem gritaria e sem protestos exagerados, mas com firmeza e determinação, impôs um figurino novo: o do repórter sério, discreto, mas preocupado com a sua repercussão. E o fato de em tão pouco tempo de vida e de atividade, ter conquistado nome e reputação internacionais, prova que ele estava certo: o público pode aceitar o sensacionalismo, pode mesmo conhecer na intimidade os campeões desse sensacionalismo, mas só consagra e venera os outros, os verdadeiros jornalistas.

Machão sem arrogância, tímido sem ingenuidade, humilde sem subserviência, Luciano nasceu e viveu para o jornalismo. Um famoso professor da Universidade de Yale, respondendo certa vez a um jovem que lhe perguntara qual a melhor maneira de ser jornalista, aconselhou: “Seja jornalista 24 horas por dia, ou jamais será jornalista.” Provavelmente sem conhecer esse conselho, Luciano seguiu-o à risca, sem plano e sem esquemas preestabelecidos, atendendo apenas à imposição de uma vocação irresistível. Profissionalmente, ele pensava apenas no jornalismo, e desconfio que jamais tenha passado pela cabeça que pudesse ser outra coisa além de jornalista. E exercendo a profissão mais poderosa do século, a mais cortejada, a mais tentada e a mais seduzida, manteve-se fiel a ela imune e indiferente a todas as seduções, a todas as tentações, a todas as propostas, mesmo as legítimas, mas diversionistas.

Sem fazer um jornalismo de liderança, Luciano fazia, no entanto, um jornalismo de vanguarda. E sobre os rumos, as contradições, as conveniências, os caminhos e os descaminhos do jornalismo, mantivemos um diálogo e um debate tantas vezes interrompido, sem divergências fundamentais, sem choques, mas indisfarçadamente diferente nos objetivos e na orientação. Eu acreditei sempre (e continuo acreditando) que em determinado momento o jornalismo se liga indissoluvelmente à política, completa-a, completando-se também. Luciano pensava de forma inteiramente diversa. Para ele, a política não estava acima do jornalismo, mas estava além dele. Não compreendia o jornalismo, a não ser como um todo, o completo em si mesmo, independente e liberto de qualquer limitação ou contato. Acreditava a sério (só fazia as coisas a sério) no princípio antiliberal, que jornalismo é apenas informação. Sobre este ponto nosso debate foi longe, durou anos, e nunca pude impor-lhe a minha convicção: jornalismo é informação, mas é também e principalmente opinião. Mas embora sem conseguir persuadi-lo, sempre estive convencido que ele algum dia evoluiria para a posição correta, conquistada com a maturidade, a perspectiva exata, a noção perfeita de como a opinião (franca e leal e não diluída tendenciosamente) no jornalismo é importante e mesmo fundamental. Tão fundamental, quanto a informação. Tão indispensável quanto ela.

Luciano, sendo um repórter nato, foi também no Brasil o que mais se preparou para o exercício perfeito da profissão. Era múltiplo e vários, pois considerava que um bom repórter não era apenas o que sabia escrever e fotografar. Pode-se dizer que Luciano traçou deste cedo, o seu destino de repórter, e cumpriu-o religiosamente. E ainda no avião sinistrado, seu corpo foi encontrado, na cabine do comandante, como a demonstrar que mesmo no avião, numa viagem onde quase nada acontece (ou acontece o irremediável). Luciano estava atento, preocupado em fazer alguma coisa, em trazer material para a sua revista e para o seu público. E o mais fabuloso e o mais sincero elogio, e o mais extraordinário cumprimento que um repórter poderia receber, ele o recebeu sem saber, já depois de morto: pois quando se soube que sua máquina fotográfica ficara milagrosamente intata, todos os jornalistas que o conheciam pensaram instantaneamente: Luciano deve ter feito alguma fotografia do avião caindo. Mas infelizmente pela primeira vez em sua carreira ele não obtivera êxito e perdera a reportagem e a vida.

Quem conhecesse Luciano, apenas superficialmente, não teria a impressão exata da sua força de repórter, pois era tranquilo demais, repousado sem a agitação e a inquietação natural do repórter jovem. Luciano gostava de viver, tinha mesmo uma certa pressa de gastar a vida e isso demonstrou fazendo tanto em tão pouco tempo, vivendo em 33 anos mais do que muita gente em 50 ou 60. Talvez fosse uma secreta intuição de que lhe faltava tempo, o que impelia a viver assim. Procurava muito os amigos, nunca estava triste, dava-se inteiro, sem exigir nada em troca. Tinha sede de amizade, de contatos pessoais, e uma esplendida capacidade de sentir, de pensar e de exprimir. Sua sensibilidade em alguns pontos, era mais de poeta do que de repórter. Teófilo de Andrade, falando no “hall” do edifício de “O Cruzeiro” (que seus colegas pediram ao embaixador Assis Chateaubriand, que passasse a denominar-se “Edifício Luciano Carneiro”) teve uma expressão feliz, quando disse que a cada vez que voava, Luciano volta com as mãos cheias de estrelas. E como voou muito, como durante muito tempo não fez praticamente outra coisa, suas mãos já transbordavam, as estrelas se faziam mais visíveis, se acumulavam, eram incontáveis.

Se alguém tivesse perguntado a Luciano Carneiro, qual a homenagem que mais desejaria receber depois de morto, na certa que ele teria escolhido a mais tocante, a mais emocionante, a que nenhum repórter até hoje recebeu: seus companheiros de profissão, colegas da mesma revista e concorrentes de outras organizações, mas todos repórteres, debruçados chorando sobre seu corpo, e despejando sobre ele pilhas de filmes virgens, deliberadamente velados. E os filmes assim espalhados sobre o seu corpo, cobrindo todos o seu caixão, eram mais bonitos e mais expressivos que flores, eram uma forma nova de condecoração, que todos os repórteres, concediam coletivamente, ao que entre eles fizera jus ao título de número 1.

Da sua esplendida geração Luciano foi o que sempre esteve mais ligado a mim, embora por uma curiosa coincidência, fosse o único que jamais trabalhara comigo.

Entrando para “O Cruzeiro” pouco tempo depois de eu ter saído (eu deixei a revista em agosto de 1948, e ele chegara em outubro do mesmo ano) não nos encontramos depois nesses 11 anos nem uma só vez, sob o mesmo teto jornalístico. Mas nos acompanhávamos mutuamente, nos analisávamos com a frieza e com a isenção que só se obtém com a verdadeira amizade, com a compreensão sem rivalidade, com a certeza de que tudo que dizíamos um ao outro, era no próprio benefício comum, e representa uma opinião sincera emitida sem constrangimento. Luciano mais do que ninguém de sua geração tinha esse dom especial de estimular, de incentivar, de convencer. Cinco anos mais moço do que eu, realizou muito mais, embora procurasse sem falsa modéstia, mas com toda a sinceridade, evitar uma comparação em que levaria evidente vantagem.

A morte de Luciano, foi a maior perda do moderno jornalismo brasileiro. E para mim pessoalmente, foi o mais intenso choque emocional que sofri em toda a vida. A mesma coisa me dizia 24 horas depois do seu enterro o pintor Enrico Bianco, também grande fraternal amigo de Luciano. Não posso me acostumar a esta perda, não consigo encontrar a palavra exata para definir meus pensamentos, palavra que ao mesmo tempo ser simples bastante par ser autêntica, e bastante grande para atingir a profundidade dessa tragédia. Sei que nenhuma palavra conseguirá destruir a surdez definitiva do destino. Gostaria, sem sentimentalismo equivocado, de dar pelo menos uma ideia aproximada do que representa a morte de uma pessoa como Luciano Carneiro. Não consigo. Mas também não tem importância. Luciano sempre soube que a morte é o fim de um sonho, a vida é uma irrealidade que só por alguns instantes sobrepõe a realidade cruel e derradeira que é a morte. Luciano não gostaria de ter morrido prosaicamente, disso tenho certeza absoluta. Como tenho certeza de que ele continuará a existir, amanhã, ainda amanhã, e sempre. Os homens que morrem cedo, não chegam a conhecer a tortura de não ter sido. Em compensação, deixam indelével, a saudade do que poderiam ser.

O artigo saiu no Diário de Notícias de 27 de dezembro de 1959, que pode ser consultado na Hemeroteca digital da Biblioteca Nacional.

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