Do medo ao pânico moral, da segurança ao desamparo

Colunistas

02.12.15

O trauma, explicava o filósofo Jacques Derrida em uma entrevista logo após o 11 de setembro, produz um medo do que ainda virá, pavor de um porvir inimaginável. Os recentes atentados de Paris podem ser vistos pela mesma ótica. O medo do que ainda poderá acontecer torna-se o principal mobilizador da política – nacional e internacional – e justifica desde a cassação de liberdades individuais até bombardeios, como os comandados pela França em aliança com a Rússia. Esse medo tem sido, seguindo o diagnóstico do filósofo Vladimir Safatle em seu recém-lançado O circuito dos afetos (Cosac & Naify), o principal afeto da política desde o início da modernidade. No diagnóstico proposto por ele, a política moderna foi instituída a partir do medo e da esperança como dois afetos principais. Medo que levaria indivíduos a serem subjugados pelas normas, estabelecidas como única forma de proteção ao desamparo. Esperança que levaria à crença em normas cada vez mais rígidas como mecanismo de proteção e controle.

Guardas vigiam a Torre Eiffel após os atentados

Decidi me debruçar sobre o ponto específico do medo por acreditar que há uma coincidência entre o diagnóstico proposto por um Safatle e a ascensão das forças conservadoras marcadas pela insistência – infelizmente cada vez mais bem sucedida – em torcer a pauta política para os aspectos morais, o que me permitiria pensar que esse medo se agravou para o que estudiosos de sexualidade chamam de pânico moral, fundado sobre fobias, um tipo de medo exacerbado e irracional (homofobia, lesbofobia etc).

Desde o início do século a política brasileira foi tomada pela pauta moralista e conservadora, cuja reação às mudanças sociais nos comportamentos relativos à sexualidade, gênero e parentesco é histérica. Não é por acaso que os artífices do pânico moral procuram cada vez mais legislar sobre a vida privada e definir o que é uma família, se uma mulher foi ou não estuprada, se duas pessoas do mesmo sexo podem compartilhar a vida e exercer juntos seus direitos civis.

Entra aqui a possibilidade de compreensão da radicalidade do subtítulo do livro – corpos políticos, desamparo e o fim do indivíduo –, quando Safatle pensa a implosão da categoria da autonomia individual a fim de encontrar algum espaço para a experiência comum. No limite, essas proposições levariam a uma ausência de legislação do Estado sobre a vida privada, não pelo viés do liberalismo, mas pela ideia de que as institucionalidades legais viriam a posteriori, a partir das demandas dos sujeitos, e não a priori, a partir da mobilização política do medo ou do pânico moral. 

Sem institucionalidades prévias, estaríamos todos diante da necessidade de trocar o medo pelo desamparo, proposta que dialoga diretamente com a filosofia política de Judith Butler. Ao falar em condição de precariedade como aquilo que é comum a todo vivente, Butler encontra um ponto a partir do qual se pode abrir mão do medo individual – este que leva à submissão – para assumir o desamparo como condição de todo sujeito. Este percurso, que Safatle faz via psicanálise e Butler percorre via teoria do enquadramento, reivindica o fim da noção moderna de indivíduo também por pensar a precariedade como o que há de comum, sem que para isso seja preciso formar uma comunidade a partir de predicados específicos. O que pode parecer um paradoxo, é na verdade, uma engenhosidade de filósofos contemporâneos que se colocam o desafio de pensar para além da defesa de identidades.

Capa do novo livro de Vladimir Safatle

Tirar o acento do medo como afeto político poderia significar encontrar um ponto a partir do qual se possa fazer a crítica da política a partir do medo ou do pânico, ambos motores do mercado de demanda e oferta de segurança – do Estado, do aparelho policial, do aparato judicial –, que como se pode ver diariamente no noticiário, protege determinados grupos em detrimento de outros. Quando Butler esteve no Brasil, em setembro, sua conferência no I Seminário Queer promovido pela Revista Cult girou em torno de paradoxos aparentemente incontornáveis. O que mais diretamente se vincula às questões abordadas por Safatle diz respeito a uma estratégia política de grupos vulneráveis: mobilizar fraquezas para obter proteção, sem problematizar o fato de que o mesmo Estado que oferece segurança também ameaça, tortura, mata, discrimina. Em O circuito dos afetos, o corpo político é desamparado, mas o desamparo como condição de precariedade de todo vivente se torna uma força política potente porque não sai em busca de garantias – individuais ou institucionais –, mas assume para si o movimento errante da vida e do desejo.

Não bastasse tudo isso, O circuito dos afetos aprofunda ainda um tema caro ao filósofo – os modos de vida do capitalismo tardio – ,anteriormente desenvolvido em O cinismo e a falência da crítica. Tomando como ponto de partida o trabalho do sociólogo Luc Boltanski sobre o “novo espírito do capitalismo” e revistando Max Weber, Safatle dedica uma importante parte do livro a pensar a articulação possível entre a plasticidade do capitalismo e a anomia, aqui entendida como desaparecimento de padrões de conduta que fazem com que o indivíduo tenha dificuldade para conformar-se às exigências contraditórias das normas sociais, restando sempre algo de inalcançável na regra que fundamenta a própria existência da regra. 

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