Dois momentos marcantes de Lina Bo Bardi

Arquitetura

11.12.14

A publicação nas páginas de Habitat do primeiro projeto de Lina Bo Bardi construído, sua residência no Morumbi, foi ilustrada pelas fotos de Francisco Albuquerque nas quais ela se apresenta posando em várias situações1.

Lina Bo Bardi na Casa de Vidro, 1952. São Paulo. Chico Albuquerque/ Convênio Museu da Imagem e do Som – SP / Instituto Moreira Salles

Já estava então havia seis anos em São Paulo, para onde viera com seu marido Pietro Maria Bardi, convidado para criar e dirigir o Masp em 1947. Concebido como centro de formação do gosto moderno em arte e arquitetura, o museu não se limitava ao valioso acervo. Os cursos de arte, desenho industrial, moda, propaganda e marketing, entre outros, do Instituto de Arte Contemporânea potencializavam o objetivo de formação, enquanto a revista Habitat, dedicada às artes e à arquitetura, ampliava sua abrangência. O objetivo era lidar com a “massa não informada, nem intelectual, nem preparada”, que exigia estratégias de formação “elementar e didática” de um público para a cultura de um modo geral e não apenas para a arte2.

Lina Bo Bardi na Casa de Vidro, 1952. São Paulo. Chico Albuquerque/ Convênio Museu da Imagem e do Som – SP / Instituto Moreira Salles

A presença do casal nos meios de comunicação dos Diários Associados era estratégica, pois a formação moderna ocorreria pela disputa na opinião pública. Nesse sentido, as fotos de Francisco Albuquerque foram funcionais para construir uma imagem da arquiteta e da sua obra.

Lina Bo Bardi na Casa de Vidro, 1952. São Paulo. Chico Albuquerque/ Convênio Museu da Imagem e do Som – SP / Instituto Moreira Salles

Apoiada no caixilho sem guarda-corpo ou na escada, de costas ou de perfil, Lina olha para a paisagem natural que ocupa o fundo. Não se trata de apenas situar uma pessoa na arquitetura, a silhueta de uma escala humana. Nem de mera promoção pessoal, de uma jovem arquiteta mulher no auge de sua beleza física.

As poses enfatizam um tipo de relação com a natureza descrita em seu texto:

“O problema era criar um ambiente ‘fisicamente’ abrigado, isto é, onde viver defendido da chuva e do vento, participando, ao mesmo tempo, daquilo que há de poético e ético, mesmo numa tempestade.” Uma relação que remete ao conceito de sublime3, na qual a natureza se apresenta para a sensibilidade romântica como um valor incomensurável, muito além do belo.

Se a Casa de Vidro se prestava como plataforma para a cena, a paisagem ao redor nem tanto. Longe de ser uma floresta natural, o novo bairro era uma fazenda de chá desativada e loteada, tendo apenas alguns remanescentes de mata. A escolha dos enquadramentos das fotos teve de ser cuidadosa para tê-los como fundo e para evitar a desagradável presença da cidade do outro lado do rio Pinheiros.

Museu de Arte de São Paulo, 1969. Avenida Paulista, 1578. São Paulo. Hans Gunter Flieg/ Acervo Instituto Moreira Salles

Vinte anos depois, em 1973, ao escrever para seus conterrâneos italianos na revista Architettura, dirigida por Bruno Zevi, Lina Bo Bardi propunha uma inversão no sentido da relação cultural entre Europa e América Latina, a qual conduzira seu posicionamento nos anos iniciais do Masp. Defendia a necessidade de “um esforço para sair da cultura que deposita ideias de um sujeito em outro, para conseguir fazer obras de criação coletiva”4. No mesmo texto aprofunda essa posição, expressando ideias então proibidas pela ditadura de serem publicadas no Brasil:

“Não existem homens absolutamente incultos, a linguagem do povo não é sua pronúncia errada, mas sua maneira de construir o pensamento. Ver pode ajudar a ver, a despertar uma natural consciência, e adquirir consciência é politizar-se, decodificar a linguagem visual reduzida a situações existenciais. Ainda que o método seja aquele do analfabeto”5.

Cavaletes de vidro, projetados por Lina Bo Bardi, para exposição no Museu de Arte de São Paulo, 1968. Hans Gunter Flieg/ Acervo Instituto Moreira Salles

Pode parecer paradoxal que as ilustrações escolhidas fossem as fotos do Masp, feitas por Hans Flieg em 1968. Para Lina, o papel do museu seria exatamente o de “despertar uma natural consciência”, e para isso já esclarecera em outra ocasião que sua intenção fora “destruir a aura que sempre circunda um museu, apresentar a obra de arte como trabalho, como profecia de um trabalho ao alcance de todos”6.

As imagens mostram a expografia com suportes transparentes e a transparência das fachadas de vidro a partir de vários pontos de vista. Em uma foto tirada de dentro da área expositiva, Flieg escolhe uma linha do horizonte pelo centro dos quadros, na altura do ponto de vista dos visitantes. Em outra tirada a partir do parque Siqueira Campos, a construção da imagem equipara os espaços do vão livre aos dos dois pisos elevados do museu, todos apresentados como continuidades do espaço urbano. A exposição de Nelson Leirner na área aberta sob o vão livre enfatiza a intenção de se levar fisicamente a arte do museu para o espaço da cidade, pois os vidros das fachadas o faziam apenas virtualmente, ao tornar visíveis as exposições na pinacoteca. No espaço público e livre, arte e vida cotidiana poderiam se fundir na construção coletiva de uma nova cultura.

Nos 20 anos que separam as duas publicações, Lina foi capaz de se transformar, desenvolvendo um novo entendimento sobre o Brasil e posicionando-se politicamente ao lado dos movimentos populares por democracia. Posição que marcaria o amplo reconhecimento de sua obra na década de 1980.

Nota do Autor: este texto foi desenvolvido a partir das posições apresentadas na conferência “Industrializzazione e cultura popolare: Lina Bo Bardi nelle politiche di sviluppo econômico e sociale brasiliane (1946 – 1982)”, realizada no seminário “Lina Bo Bardi 1914-1992 – Una architetta romana in Brasile”, promovida pela Facultà di Architettura da Università La Sapienza, em Roma, nos dias 4 e 5 de dezembro de 2014.

NOTAS:

[1] BARDI, Lina Bo. Residência no Morumbi, in Habitat 10, jan/mar 1953 p. 31

[2] BARDI, Lina Bo. Função social dos museus, in Habitat, n.1, out/dez 1950

[3] Cfr. CAMPELO, Maria de Fátima. Moradas da Alma. Dissertação de Mestrado do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Escola de Engenharia de São Carlos, Universidade de São Paulo, 1996.

[4] BARDI, Lina Bo. Museu di Arte in San Paolo del Brasile. In L’Architettura, Croneche e Storia, Milano, n. 210, abril 1973, p. 777.

[5] Idem, ibdem.

[6] BARDI, Lina Bo – Explicações sobre o Museu de Arte in jornal “O Estado de São Paulo”, 5/abr/1970 – Arquivo Instituto Lina Bo e P M Bardi.

, , , ,