Dramaturgia do invisível

Colunistas

30.07.14

Quando Olivier Py assumiu a direção do Festival de Avignon e propôs ao italiano Giorgio Barberio Corsetti remontar O Príncipe de Homburgo, de Kleist, no pátio de honra do Palácio dos Papas, a explicação parecia mais ou menos óbvia. A peça se tornou um marco na história do teatro francês quando foi encenada pela primeira vez no Palácio dos Papas, em 1951, com direção do idealizador do festival, Jean Vilar, e elenco encabeçado por Gérard Philipe e Jeanne Moreau. Py queria prestar homenagem a Jean Vilar e ao Teatro Nacional Popular que Vilar dirigiu. O que a princípio talvez não fosse tão evidente na sua escolha para abrir a 68a edição do festival, que terminou no domingo, é a estranha pertinência do texto de Kleist numa época em que a ideologia nacionalista volta para mostrar a pior de suas caras.

A peça foi escrita em 1810, quando o exército de Napoleão dominava a Europa ocidental, um ano antes do suicídio do autor. Durante sua vida breve (1777-1811), sempre assombrado pela imaginação suicida, Kleist serviu como soldado, chegando a primeiro-tenente do exército prussiano, antes de cogitar se alistar no exército francês contra os ingleses e ser equivocadamente preso como espião. Kleist esperava sua reintegração ao exército prussiano quando deu um tiro na cabeça, em novembro de 1811, às margens do Wannsee, entre Berlim e Potsdam, depois de matar com uma bala no coração a mulher de um financista berlinense condenada por um câncer e que, como desdobramento natural de uma correspondência delirante com o poeta, decidira acompanhá-lo no suicídio longamente premeditado.

Encenação de O Príncipe de Homburgo no Festival de Avignon de 2014. © Christophe Raynaud de Lage.

O Príncipe de Homburgo é, em princípio, um drama patriótico, escrito com intenções nacionalistas e dirigido à dinastia prussiana dos Hohenzollern como uma exortação às armas e à libertação dos territórios alemães sob domínio napoleônico. A diferença em relação a um mero drama nacionalista é que a peça é também um sonho (ela começa com uma cena de sonambulismo do protagonista) e que o mundo catatônico ali representado (o mundo do inconsciente, como acabaria ficando claro dois séculos depois) opõe os valores e a lei da nação aos desejos e às ações impensadas do indivíduo em luta pela pátria. Digamos que a mensagem é, no mínimo, contraditória.

O príncipe de Homburgo está no comando de um batalhão do exército prussiano. Durante uma batalha contra os suecos, em vez de esperar pelas ordens superiores, ele arremete contra o inimigo, numa iniciativa que tem tanto de entusiasmo pátrio quanto de loucura e que remete ao sonambulismo da primeira cena, quando o príncipe agia inconscientemente, como se vivesse num sonho.

A ação intempestiva do herói vai garantir a vitória do exército prussiano, não sem levantar, num primeiro momento, a suspeita de que o comandante do exército teria morrido durante a investida. A suspeita não se confirma mas pesa na decisão de levar o príncipe de Homburgo à corte marcial, por insubordinação. Até o final da peça, não se sabe se o herói será condenado à morte ou não, em nome da pátria cuja vitória ele assegurou. Tudo é extremamente ambíguo. No último ato, numa reviravolta que ecoa a imaginação suicida do autor, o próprio príncipe, depois de fazer de tudo para salvar a pele (e quando afinal tem a chance de ser agraciado), passa a defender, paradoxalmente, sua morte em nome da lei da pátria.

Goethe reprovava no teatro de Kleist uma “dramaturgia do invisível”, o que hoje seria entendido imediatamente como elogio. É esse invisível que a língua de Kleist faz ver, em cena ou fora dela. Uma língua idiossincrática, à parte dentro do próprio idioma alemão, e que de certa forma já anunciava a literatura de Kafka. Como Kafka, Kleist foi incompreendido por seus contemporâneos. Hoje considerada sua obra-prima, “O Príncipe de Homburgo” só foi publicada e encenada dez anos depois da morte do autor, resultando no mais completo fracasso e arrancando risos da plateia na cena em que o herói, na sua luta por ser agraciado, suplica a intervenção da tia junto ao marido, comandante do exército.    

Gilles Deleuze, que já não goza do mesmo prestígio que tinha há vinte anos, graças em parte aos seguidores que reduziram seu pensamento a jargão e palavras de ordem, identificava na peça de Kleist uma “máquina de guerra contra o aparelho de Estado”: “Goethe e Hegel, pensadores do Estado, viam um monstro em Kleist. E Kleist perdeu de saída. Por que, então, a mais estranha modernidade está do lado dele?”.

Encenação de O Príncipe de Homburgo no Festival de Avignon de 2014. © Christophe Raynaud de Lage.

Porque, segundo Deleuze, essa máquina de guerra, uma vez vencida pelo Estado, se converte em “máquinas de pensar, de amar, de morrer, de criar, que dispõem de forças vitais ou revolucionárias capazes de pôr em questão o Estado vencedor”. E isso a começar pela necessidade de se tornar um “estrangeiro em sua própria língua” para poder dizer o que essa língua já não consegue compreender. Pela necessidade de criar uma língua artística, exterior, impura, pobre talvez (ou “menor”), mas capaz de fazer ver o que é invisível à língua nacional, orgulhosa de sua hegemonia mas incapaz de defender o Estado democrático da cretinice, dos oportunismos e das imposturas de seus piores inimigos convertidos em defensores da pátria, reduzida à impotência de assistir boquiaberta à perversão dos sentidos por discursos de inspiração fascista, por exemplo, como um corpo indefeso aos ataques de uma doença autoimune.   

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