Drive e a reinvenção da roda

No cinema

12.03.12

 

A crítica brasileira, de um modo geral, gostou muito de Drive, de Nicolas Winding Refn. Até aí tudo bem, pois o filme é ótimo: bem construído, bem dirigido, com um domínio seguro da tensão e do ritmo etc. etc. O problema está no exagero – não do filme, mas da crítica. Alguns se entusiasmaram a ponto de ver ali uma novidade absoluta, um marco da produção norte-americana recente.

http://www.youtube.com/watch?v=2J94JRSTcMY

Devagar com o andor. Observado friamente, Drive não é mais do que a competente combinação de duas tradições bastante surradas do cinema hollywoodiano: a dos filmes de perseguição de carros e a da celebração do justiceiro individual. A primeira vertente garante a adrenalina demandada por uma sociedade que tem a volúpia do automóvel e da velocidade. A perversão erótica implicada nessa tara contemporânea foi explicitada pelo escritor J. G. Ballard no romance Crash, magnificamente filmado por David Cronenberg em 1996.

A segunda tradição, a dos vingadores solitários, propicia a catarse dos nossos sentimentos de revanche contra os criminosos. O justiceiro cool vivido por Ryan Gosling seria, em outros tempos, encarnado por Clint Eastwood, ou por Charles Bronson, ou mesmo pelo taxi driver Robert De Niro do filme de Martin Scorsese.

A fórmula é conhecida: um acúmulo de maldades da parte de um ou mais bandidos, até que explode a vingança purificadora, numa apoteose de violência. Sam Peckinpah foi quase um especialista no gênero, e deu a ele um filme paradigmático: Sob o domínio do medo (1971), estrelado por Dustin Hoffman.

Pensei várias vezes em Peckinpah enquanto assistia a Drive, em especial pelo recurso aos closes e câmeras lentas que impregnam as cenas mais brutais de uma inequívoca sensação de gozo, quase de êxtase. Tenho alguma dificuldade em aplaudir esse sadismo pretensamente legitimado pela justificativa de que se está punindo o mal absoluto.

Que essas mitologias tão essencialmente americanas tenham sido recicladas habilmente por um cineasta dinamarquês não chega a ser uma surpresa. Mesmo em seus primeiros filmes, realizados ainda em seu país natal, Nicolas Winding Refn já mostrava ter assimilado bem os fundamentos do cinema que mais admira, o cinema clássico de ação norte-americano, seja ele o western, o policial ou mesmo o terror. Aqui, uma cena emblemática de seu Bleeder (1999), em que o leitor de estômago forte poderá constatar que o pendor sanguinolento do diretor vem de longe:

http://www.youtube.com/watch?v=a285tlEGuD4

Lembro-me de ter entrevistado Refn há uns 12 anos em Brasília, onde ele tinha ido justamente para apresentar Bleeder  num festival internacional. Em conversa informal depois da entrevista, de que participou também o crítico e cineasta Kleber Mendonça, o dinamarquês elencou seus filmes favoritos de todos os tempos. Havia na lista títulos como O massacre da serra elétrica (Tobe Hooper, 1974), em meio a obras-primas de Hitchcock, Ford e, claro, Peckinpah. Eram, em todos os casos, e independentemente dos gêneros, expoentes do cinema físico, altamente visual, sem nenhuma lenga-lenga literária ou teatral.

Drive é resultado dessa formação, desse aprendizado, por um aluno aplicado e criativo. Para permanecer viva e influente, Hollywood precisa de quando em quando de sangue novo, vindo da Europa, da Ásia, da Oceania ou da América Latina. De gente que viu muito cinema americano e foi criada sob seus mitos. De Paul Verhoeven a Nicolas Winding Refn, passando por John Woo e Peter Weir, a lista é interminável. Com maior ou menor êxito, com mais ou menos independência, cada um recicla à sua maneira o legado dos mestres. Mas até agora, que eu saiba, nenhum deles reinventou a roda.

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