Duas (suaves) doçuras do Japão

Cinema

15.05.15

No começo, muito barulho. Para contar raiva incontida de um adolescente, todo tempo dando cabeçadas na parede, Cabeça erguida (La Tête Haute, de Emmanuelle Bercot, filme de abertura do 68º Festival de Cannes) adota um estilo de narração diretamente inspirado em seu herói, Malony Ferrando. Na primeira cena, ainda criança, Malony é abandonado pela mãe que se queixa à juíza da vara de infância ser incapaz de conter a violência do filho. Daí em diante, para mostrar como os personagens quebram mesas e cadeiras, gritam, choram e se agridem, o filme faz de conta que, como eles, perdeu a cabeça e está a ponto de explodir: qualquer ruído soa bem alto; a música, mais alto ainda; e o que bate forte no ouvido golpeia os olhos com mais força ainda: cortes bruscos separam uma imagem da outra.

Cena de Cabeça erguida

A história é contada por meio de muitos saltos no espaço e no tempo. A rigor cortam-se as pausas e os tempos lentos da ação, de modo a guardar apenas as cenas de agressão verbal ou física de Malony, de sua mãe, ou dos adolescentes do centro de reabilitação.

Cabeça erguida não é só um filme sobre a agressividade inata e até certo ponto ingênua de um adolescente, mas também, ou principalmente, um filme formalmente agressivo, feito de uma agressividade como a de seu jovem protagonista. Feito à maneira de romance de formação: segue o aprendizado de um adolescente que, aos 17 anos, começa a domar a fúria usada para se comunicar com o mundo. Quer pela agressividade de Malony (que Rod Paradot vive com rosto, voz e gestos hipertensos), quer pela serenidade compreensiva da juíza (que Catherine Deneuve vive com voz e gestos suaves), a realizadora sugere que os jovens, hoje, se educam pela violência, que a violência é o caminho necessário para se chegar à maturidade. Na metrópole sem pai nem mãe, só a violência ensina a viver. Deste modo, o aprendizado do espectador passa por um necessário mergulho num estado de tensão idêntico ao do personagem. Esta experiência de deslocamento para uma realidade toda feita de tensão e agressividade poderá ser experimentada em junho com a exibição de Cabeça erguida no Instituto Moreira Salles na abertura do Festival de Cinema Francês.

De um modo involuntário, o nervoso e gritado do filme de abertura contribuiu para destacar a delicada narrativa dos dois filmes japoneses que vieram em seguida, um na mostra competitiva, Nossa irmã mais nova (Hamimichi Diary), de Kore-eda Hirokazu, outro na abertura da mostra Un Certain Regard, Doce de feijão (An), de Naomi Kawaze – dois realizadores que tiveram seus filmes anteriores distribuídos no Brasil, Tal pai tal filho, de Kore-eda, foi exibido em nossos cinemas em 2013, e O segredo das águas, de Kawaze, foi lançado em fevereiro último no cinema do Instituto Moreira Salles.

Cena de Nossa irmã mais nova

São duas adaptações. Kore-eda partiu de uma história em quadrinhos de Yoshida Akimi; Kawaze, de um livro de Durian Sukegawa, escritor que há quatro anos trabalhou com Kawaze interpretando um dos personagens de Hanezu.

Nossa irmã mais nova começa com um funeral. As irmãs Sachi, Yoshino e Chika vão ao enterro do pai, que abandonara a família para casar-se de novo e viver noutra cidade. No funeral descobrem que a segunda mulher de seu pai morrera, que ele se casara pela terceira vez, e que elas tinham uma irmã mais nova por parte do pai. Adiante, outros funerais, pelo menos três mais, pontuam a história, mas o que vive em cada um deles não propriamente a perda, o luto, a tristeza diante da morte, mas uma particular celebração da vida por meio das recordações de momentos felizes. Assim, o enterro do pai, por exemplo, passa a ser a memória de suas pescarias, de como ele manejava o anzol, ou de seu prazer diante das cerejeiras em flor. A morte da tia, a lembrança de seu licor de cereja. Os diferentes funerais, em resumo, constituem-se num ritual de celebração da vida, a que se interrompeu ali mais a que será experimentada em seguida com os filhos e netos dando continuidade ao que aprenderam com os pais e avós.

Cena de Doce de feijão

Doce de feijão começa numa pequena loja de doryakis, uma sobremesa tradicional no Japão, feita de duas pequenas panquecas com um recheio de “an”, doce de feijão vermelho. Tokue, uma mulher de pouco mais de 70 anos, mostra ao jovem Sentaro como cozinhar o feijão para conseguir a correta consistência e sabor ao recheio dos doryakis. Adiante, várias outras cenas de Tokue com a panela de feijão no fogo. Uma e outra vez ela insiste na necessidade de limpar o feijão antes de levá-lo à panela, de manter a água não muito aquecida para não ferir o feijão, e, sobretudo, de conversar com ele – agradecer o feijão pelo longo caminho feito até chegar à panela, pedir que eles trabalhem bem, prometer que irá trocar a água de quando em quando para eliminar as coisas amargas que eles sofreram ao longo da vida e se encontravam coladas neles. Para o incrédulo Sentaro, o vendedor de doryakis, Tokue explica que a natureza conversa conosco numa linguagem que não conhecemos, que é preciso estabelecer uma relação harmoniosa com ela, e conversar com os feijões era absolutamente necessário para eles nos dessem de volta um an suave e doce. 

Se de certo modo a tensão gritada de Cabeça erguida contribuiu para destacar a excelência dos meios tons dos dois filmes japoneses, o que veio em seguida na competição de Cannes, pela brutalidade da forma ou das histórias contadas, ressaltou ainda mais a qualidade dos filmes de Kore-eda e Kawaze. A ficção realista do húngaro László Nemes, O filho de Saul (Saul Fia), ambientada num campo de concentração na segunda guerra mundial, ou as ficções fantásticas do italiano Matteo Garrone, O conto dos contos (Il raconto dei racconti), ambientado na Idade Média, e do grego Yorgos Lanthimos, A lagosta (The Lobster), ambientado no tempo presente, reafirmam em cada cena de violência, cada momento de efeitos especiais na imagem, que o melhor deste começo de Cannes vem do Japão, Minha irmã mais nova e Doce de feijão.

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