E agora, sem o Zé?

Cinema

07.04.14

Minha geração não viu José Wilker nos anos gloriosos do Teatro Ipanema, no iniciozinho da década de 1970. Não o viu em sua própria peça “A China é azul” nem, ao lado de Rubens Correa, em “O arquiteto e o imperador da Assíria”, de Arrabal.

Fomos conhecê-lo na TV. Na minha memória, o ponto de partida é o Mundinho Falcão de “Gabriela”, a melhor telenovela já feita. Como em seguida interpretou no cinema o Vadinho de “Dona Flor e seus dois maridos”, baianizou-se no imaginário nacional, embora fosse um cearense carioquíssimo.

No cinema, sua maior paixão, nunca deixou de ser vários: Lorde Cigano, Tenório Cavalcanti, Antônio Conselheiro, Zeca Diabo, dramas de Cacá Diegues, chanchadas de Hugo Carvana. Fez valer o clichê “versátil”, salpicado em quase todos os obituários produzidos neste fim de semana.

Na inevitável linha de montagem da TV, perdeu parte de suas nuances. Era escalado para tipos como o galã durão (antecessor de seu amigo José Mayer, portanto), o coronel durão, o empresário durão, o picareta durão. Sua voz grave reforçava a imagem máscula.

Virou alvo de imitações. Eu e amigos de faculdade repetíamos seus diálogos com Stenio Garcia em “Final feliz”.

– Ô, seu Rodriiiiiiigo! – chamava Stenio.

– Mêstre! – respondia Wilker, barítono como nunca.

Porém, quando já parecia apenas administrar sua carreira televisiva, explodiu com o divertidíssimo bicheiro Giovanni Improtta de “Senhora do destino”, o do bordão “felomenal”. E ainda há pouco, em 2012, transformou um personagem secundário, o coronel Jesuíno Mendonça, no maior sucesso da nova versão de “Gabriela”. Outro bordão seu, “deite que eu vou lhe usar”, ganhou as ruas, o que o deixava extremamente satisfeito.

Wilker virou Zé há alguns anos, quando começou a namorar minha amiga Claudia. A imagem de um homem sério e quase arrogante – ele se recusou a me dar uma entrevista quando dirigia a peça “A morte e a donzela”, pois estava irritado com a crítica do jornal em que eu trabalhava – desmilinguiu-se em apenas dois encontros. Risonho, afável e generoso, cativava com facilidade.

Na madrugada de sábado para domingo, dos amigos que chegavam ao velório no Teatro Ipanema ouvia-se com frequência a expressão “que loucura!”. Com o Zé, a morte abusou de ser estúpida. Um jantar, uma noite de sono e o fim. Sem muita dor, mas sem nenhum aviso prévio.

Não é só pelos 66 anos. Zé tinha jeito de criança. Gostava de usar meias diferentes, cada pé de uma cor. Sempre de tênis. Era compulsivamente infantil ao comprar. Sobretudo livros, discos e filmes, mas presentes variados para os muitos que amava.

Talvez também tenha sido um pouco criança ao desafiar o risco genético e, apesar de a mãe ter morrido do coração, fumar tanto e por tanto tempo. Mas um check-up recente tinha lhe afiançado o bem estar. E ele até planejava momentos de maior relaxamento, longe do trabalho, longe do Rio.

Não teve tempo para ter netos. Claudia dizia que ele, pai tão zeloso de Mariana e Isabel, já não esbanjava paciência com crianças. Segundo ela, só gostava de Ana, minha filha. Podia não ser verdade, mas era comovente vê-lo se agachando para rir de suas bagunças.

Eu soube que, ao passar em frente à TV durante uma cena de “Amor à vida”, ela exclamou: “Olha o tio Zé!”.

A última vez em que nos vimos foi exatamente no aniversário de Ana, no domingo passado. Na segunda-feira, Claudia me falou por telefone: “Zé disse que nunca te viu tão triste”. Como grande ator e diretor, bastava-lhe uma conversa de poucos minutos para enxergar o fundo das coisas.

É imensurável a falta que fará ao futuro de Ana alguém inteligente, afetuoso e disposto a oferecer o que conhece. Mas ela saberá, por nós, que existiu o “tio Zé”. E saberá também pelo país, pois não será esquecido. A dor e o espanto demonstrados no velório por tantos e tão talentosos amigos não cairão no vazio.

Além deste arrazoado, que poderá soar aproveitador para quem o lê, fica em mim o lamento de, por exemplo, não termos conversado mais sobre sua montagem de “Rain man”, peça baseada no filme sobre um rapaz autista – como é meu filho mais velho. E, ainda, o lamento por tantas conversas que não tivemos, em função da minha timidez e, principalmente, da minha estupidez, que só foi superada pela da morte, a maior de todas.

Mas, à revelia dele mesmo e pela voz de Claudia, Zé me ensinou que não vale a pena prender-se apenas às coisas terríveis da vida. Numa noite, tudo pode acabar. E o que fica? Como ficará agora, sem o Zé?

Luiz Fernando Vianna é coordenador de internet do IMS.

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