É proibido proibir, mas não opinar

Correspondência

01.09.11

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Caro Sérgio,

 

Impagável essa história que você contou do Makario e dos poemas do Drummond (o falso e o verdadeiro) que ele apresentou nos bares de Belo Horizonte.

Essa questão das falsificações deu pano para manga. Muita gente que entreouviu esta nossa conversa se manifestou – no Facebook, no Twitter, no boca a boca. Aqui mesmo, num comentário à minha carta anterior que era quase mais longo que a própria carta, uma moça me acusou de querer “censurar a internet”. E eu que pensei que tivesse sido claro.

Mas acho que talvez eu tenha mesmo soado pedante ao dizer que todo o mundo tem o direito de se expressar, “mas a arte é outra coisa”. Um leitor pediu para eu definir então o que é a arte. Saí pela tangente dizendo – e é verdade – que nem um livro inteiro conseguiria responder satisfatoriamente a essa pergunta.

Você mencionou o filme-chave sobre o assunto, F for fake, do Orson Welles. Há ali uma dessacralização da arte, uma desestabilização radical do conceito de autoria, que é muito estimulante e divertida. Eu me lembro de uma passagem crucial, em que o próprio Welles conta uma fábula singela. Adão, entediado no Éden, faz desenhos na poeira do chão com um graveto. O diabo espia por cima do seu ombro e comenta: “É, é bonito. Mas… será arte?”

Não há uma resposta simples e incontestável a essa pergunta imemorial. Até um tempo atrás – digamos, as primeiras décadas do século passado – ainda havia o critério da técnica, do “saber-fazer”, mas isso começou a ser questionado com Duchamp e desembocou nas instalações e na “subversão dos suportes” da arte contemporânea. Já não é necessário pintar quadros ou esculpir a pedra para “fazer arte”. Basta ter uma ideia e organizar de determinada maneira os objetos do mundo para expressá-la.

Que fique claro: não estou criticando esta nova situação, nem lamentando nostalgicamente o fim da arte do passado. Para mim, a maior babaquice é suspirar pela “Arte”, ou pelo “Belo”, escritos assim, com maiúsculas, e vistos como entidades abstratas, a-históricas.

Penso que cada obra de arte – ou cada objeto estético, cada artefato expressivo, cada manifestação material do espírito, como quiserem chamar – cria suas próprias regras, sua própria lógica, seus próprios critérios e valores. Se conseguir tocar a sensibilidade e a inteligência de outros, muito bem. Se não conseguir, paciência.

Mas, a meu ver, isso não convalida o “vale-tudo”. Se você reparar bem, nem mesmo as boutades estéticas de Duchamp – como a Fonte ou a Roda de bicicleta – eram aleatórias ou desprovidas de uma ideia, um conceito e mesmo de um “saber-fazer”. Havia nessa reapropriação do ready-made uma consciência aguda da forma e de sua ação no mundo. Uma inteligência estética, em suma.

Quem quiser escrever lugares-comuns piegas e chamar de poesia, compor muzak e chamar de música, acrescentar lixo ao lixo do planeta e chamar de arte, que vá em frente. Seja na internet ou onde for. É proibido proibir. Mas me reservo também o direito de não gostar e de insistir em que trigo é trigo, joio é joio.

Para terminar num tom menos ranzinza, digo que li Alvo noturno, o novo romance de um autor que ambos admiramos, Ricardo Piglia, e adorei. É um falso noir ambientado no pampa argentino e traduzido impecavelmente por Heloisa Jahn. Piglia mostra que é possível homenagear um gênero sem sacralizá-lo, mas sim fazendo sua crítica. É possível questionar a narrativa narrando. E criticar a arte… fazendo arte.

 

Grande abraço,

 

Zé Geraldo

 

* Na imagem da home que ilustra este post: cena do filme F for fake (1973), de Orson Welles

 

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