Elisa Lispector revisitada: entrevista com Nádia Battella Gotlib

Literatura

19.07.11

Neste 24 de julho, a romancista e contista Elisa Lispector completaria 100 anos. A escritora, cujo acervo está sob a guarda do IMS-RJ desde 2007, estreou na literatura em 1945, com o romance Além da fronteira. Três anos mais tarde, inspirada na história dos Lispector, publicou No exílio, em que narra a trajetória de fuga de uma família da Ucrânia, seu país de origem, para o Brasil. Com o romance O muro de pedras, a irmã de Clarice Lispector ganhou os prêmios José Lins do Rego (1962), da Livraria José Olympio Editora, e Coelho Neto (1964), da Academia Brasileira de Letras. Elisa Lispector só começaria a editar sua produção de contista em 1970, ano em que lançou Sangue no sol.

Para homenageá-la, as estagiárias da Reserva Técnica Literária do IMS, Marcela Isensee e Cecília Himmelseher, entrevistaram, por e-mail, a pesquisadora Nádia Battella Gotlib, autora de importante obra biográfica sobre Clarice Lispector. Livre-docente e professora de Literatura Portuguesa e Literatura Brasileira pela Universidade de São Paulo, Nádia prepara um livro sobre Elisa e fala a respeito da vida e da obra da escritora.

A senhora já lançou livros sobre Clarice Lispector: Clarice – Uma vida que se conta, em 1995, e Clarice fotobiografia, em 2008. Agora, prepara um livro sobre Elisa Lispector. Fale um pouco sobre esse livro e o porquê de escrevê-lo.

Tenho especial admiração pela obra de Elisa Lispector. Essa é a razão principal. Nesse livro, percorro a obra de Elisa de uma perspectiva analítica e crítica, com o objetivo de detectar as marcas da qualidade literária de seus textos. Além disso, a obra de Elisa não tem recebido a atenção que merece por parte de editoras, e, por consequência, por parte do público leitor que, simplesmente, não tem acesso à maioria dos livros que ela escreveu. Apenas um dos seus romances, No exílio, de 1948, ganhou uma terceira edição, em 2005, pela editora José Olympio, e tem edição em francês, pela Editions des Femmes. Três outros ganharam uma segunda edição, mas há 20 e 30 anos. Os outros seis não foram reeditados. E muitos têm suas edições esgotadas. É o caso de Ronda solitária, difícil de encontrar até em sebos.

Clarice e Elisa discutiam suas produções literárias? Como era a relação entre as duas irmãs e escritoras?

Nas cartas, Clarice discutia seus textos mais com Tania (a irmã do meio) do que com Elisa (a irmã mais velha). Tania só publicou um livro de contos, O instante da descoberta, em 2003, portanto, 26 anos depois da morte de Clarice. Mas tinha sensibilidade de escritora e por isso fazia sugestões pertinentes, que Clarice acatava. Quanto ao diálogo com Elisa… esse não chegou a nós, tal como nos chegou o diálogo com Tania. Segundo depoimento que a própria Tania me concedeu, Clarice não apoiava os textos autobiográficos de Elisa e chegou a sugerir que não reeditasse No exílio, em que Elisa conta a história da sua família judia, os Lispector, incluindo capítulo sobre os ascendentes russos e a difícil e dolorosa viagem de exílio dos seus pais com as três filhas, da Ucrânia para o Brasil.

Elisa publicou romances, contos e chegou a receber o cobiçado Prêmio José Lins do Rego, em 1962, pelo romance O muro de pedras. Quais são as características marcantes de sua obra?

Talvez a mais marcante seja o seu pendor para um registro sutil da intimidade das personagens, sobretudo das mulheres. Sob este aspecto, mostra afinidades com a literatura de Clarice. Outra característica marcante é a de flagrar personagens envolvidos na vida da burocracia, numa rotina desgastante e estéril. Essa característica não tem o mesmo destaque na literatura de Clarice. Aliás, Elisa conhecia bem a vida de funcionária pública como profissional que atuou no Ministério do Trabalho e Previdência social, até aposentar-se, em janeiro de 1969.

O medo e a esperança são temas presentes nos jovens refugiados mostrados em No exílio. O que há de autobiográfico nesse romance? Elisa teve alguma atuação de destaque na comunidade judaica brasileira?

É possível considerar a obra como um romance autobiográfico a partir do cotejo entre o que ela conta e o que os documentos disponíveis registram. Há coincidências que evidenciam o fato de que a história da família é a história dos Lispector. Na realidade, Elisa tenta disfarçar um pouco: altera nomes de pessoas da família, por exemplo, mas os nomes mantêm semelhanças que permitem que se estabeleçam as conexões. O pai, a mãe e as três filhas, que ganharam em português os nomes de Pedro, Marieta, Elisa, Tania, Clarice, tiveram seus nomes registrados no passaporte tirado em Bucareste, na Romênia, respectivamente como Pinkhouss, Mania, Leia, Tania, Haia; e os nomes das personagens do romance são Pinkhas, Marim, Lizza, Ethel, Nina. Coincidências existem ainda entre documentos e dados do romance referentes a lugares da Ucrânia onde viveram, ao percurso que fizeram para chegar ao Brasil e a episódios da vida já em território brasileiro. Outras coincidências aparecem a partir do cotejo entre o citado romance autobiográfico e outro texto de Elisa, este, de caráter mais acentuadamente memorialístico, em fase de edição pela editora da Universidade Federal de Minas Gerais, intitulado Retratos antigos, em que Elisa faz uma apresentação dos seus ascendentes.

A ligação forte com a tradição da cultura judaica manifestou-se também por outros meios: cultivava a convivência com parentes da colônia judaica do Rio de Janeiro; participava de rituais religiosos em casa de parentes; mantinha laços de amizade com pessoas responsáveis por periódicos de divulgação de fatos relativos à colônia; e atuava junto a instituições de apoio a pessoas de famílias judaicas.

Na sua opinião, Elisa Lispector é melhor romancista ou contista?  Que obra dela a senhora destacaria?

É boa romancista e contista. De fato, um dos seus melhores romances é O muro de pedras, que ganhou dois prêmios literários. No gênero, eu incluiria ainda Ronda solitária, terminado em 1949, logo depois da publicação de No exílio, e publicado em 1954. Nestes, e na maioria dos demais, a personagem feminina ganha destaque na sua luta contra a angústia e a inevitável solidão. Mais um traço de afinidade com a literatura de Clarice…

Entre os textos de memória, incluiria Retratos antigos, pelas informações valiosas que nos presta em relação a costumes da tradição judaica. Observe-se que nesse breve texto aparece uma das duas únicas informações documentais, além do atestado de óbito, referentes à doença da mãe, Marieta, que terminou seus dias em cadeira de rodas: Elisa afirma que a mãe sofria de “hemiplegia” (isto é, paralisia parcial do corpo decorrente de lesão no cérebro causada por “trauma”, isto é, batida, ou contusão forte) “acometida” durante um pogrom. A outra informação sobre a doença da mãe aparece num bom conto autobiográfico, intitulado “Exorcizando lembranças”: neste conto, Elisa afirma que a mãe sofria de mal de Parkinson.

Qual o legado de Elisa Lispector para a literatura brasileira? 

Explorou com especial delicadeza e perspicácia os meandros das profundidades da alma humana, acompanhando a par e passo o movimento interior das personagens, num fluxo narrativo que mostra nuances de humor, emoções e reflexões. Paralelamente, cultivou dados referentes ao seu próprio passado e ao de sua família, com seus rituais, hábitos alimentares, ocupações profissionais, dificuldades de adaptação, empenhos profissionais – matéria que hoje constitui um capítulo importante da história da cultura judaica no Brasil.

 

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