Emergências quelônicas

Correspondência

16.03.11

Oi, Daniel Galera

Não encarei o Suttree ainda. Li Meridiano de sangue totalmente por acaso, há anos, fiquei com uma impressão forte, mas não fui atrás dos outros. Depois, fui ler o Todos os belos cavalos e o A estrada, e parei por ali. Senti emanações claras de um daqueles universos ficcionais perniciosos, que exigem dedicação, muitos anos indo e vindo nos mesmos livros, e mais biografias, ensaios, deus me livre. Sou totalmente poroso a essas coisas, preciso ficar ligeiro, não tenho condições morais de sustentar outro gosto.

De modo que entendo sua ligação com o McCarthy, bem como essa dedicação infinita a coisas inúteis, o tempo que a gente gasta com obsessões pessoais, sempre desinteressantes aos outros. Meu Ulysses, como você sabe, foi o Ulysses. Pena que o livro tenha ficado com uma fama tão ruim, aliás. Virou moda falar que é ilegível, que todos os leitores são pedantes, que ninguém entende, o que é uma injustiça tremenda com o Joyce.

Embora ele mesmo tenha chamado o Ulysses de Inutilmente Ilegível Livro Azul da Rua Eccles (“usylessly unreadable Blue Book of Eccles”, diz um dos personagens do Wake), a verdade é que o livro é muito mais acessível do que parece, por razões que esbarram no que você estava falando sobre o Suttree.

Uma das questões centrais do Ulysses é o narrador. (Se bem que há quilômetros em estantes de bibliotecas dedicados a catalogar questões centrais do Ulysses, mas você entendeu.) As mudanças de narrador ocorrem entre os capítulos, entre os parágrafos e, frequentemente, entre uma linha e outra. Todavia, decifrando isso, o livro se abre feito uma mala velha e se torna incrivelmente próximo, mais do que qualquer outro que já li.

Isso se dá por um fato bastante simples: O Ulysses é um livro sobre você. Sobre mim. É um livro que fala intimamente de nossos amigos e de nossas famílias. O dia do sr. Bloom é a vida de cada um de nós, e tudo acontece: pessoas morrem, se apaixonam, traem, fazem pequenas e grandes contravenções. Todo o artifício técnico do Joyce, que poderia tornar o livro frio, serve justo para o contrário, e se a narrativa fosse comum, seria impossível atingirmos o grau de identificação com os personagens que o Ulysses permite.

O Joyce não foi o primeiro a usar o monólogo interior, e essa não é nem de longe a única técnica narrativa do livro, ou a mais importante. Mas a voz do sr. Bloom é tão particular, tão específica a ele, que espanta o efeito alcançado pelo autor ser justo o contrário: quanto mais se aproxima do Bloom no detalhe, mais o livro se revela ao leitor não como algo específico, e sim coletivo. As andanças do Bloom são o que chamamos de vida secreta, aquela narrativa interior que fazemos ao passear na rua, ao imaginar coisas, ao lidarmos com as grandes e pequenas questões do dia a dia.

Por muito tempo a crítica se preocupou em identificar o paralelismo do livro com a Odisséia, em esmiuçar essa técnica ao limite do tolerável. Quando na verdade, pelo menos na minha cabeça, ela é quase secundária. Claro que é bacana ver como o Joyce transporta os episódios para a Dublin do início do século XX. Mas o fato de se apoiar na Odisséia serve muito mais para elevar o estatuto do Bloom a herói clássico, e ao mesmo tempo para murchar e ridicularizar a figura do herói clássico. O que torna o livro uma das obras mais comoventes que conheço: cada humilhação sofrida pelo Bloom cala fundo, e cada pequena vitória é igualmente comemorada.

Não vou me estender nisso porque você é meu amigo e não merece. E também acho que não consegui explicar direito o que o livro causou em mim na primeira leitura. O que posso dizer é que essa voz na minha cabeça, essa vida secreta, mudou de eixo, e nunca li nada que surtisse uma reação tão profunda. Ao mesmo tempo, o livro é de rolar de rir, o Joyce tinha um senso de humor perturbado, e há poucas páginas sem um trocadilho infame ou uma piada muito sensacional. Talvez seja essa a chave para entender o Ulysses: esquecer os críticos de casaca, esquecer o Peso da Obra, e simplesmente encarar o bicho.

Mas confesso que fiquei com inveja da sua tradução do Suttree e resolvi encarar um trecho do Ulysses. É um dos meus capítulos favoritos, onde somem os narradores e o livro vira um jogo de perguntas e respostas, seco e científico. Peguei o trecho sobre água, que é um barato e mostra a inversão que ele faz da técnica (a resposta é tudo menos fria e científica). No começo, fiquei com medinho e me apoiei um pouco na tradução da Bernardina. Depois da terceira linha, fechei a tradução e fiz sozinho. Devo ter cometido umas barbaridades, mas oquei, estamos entre amigos.

O que na água Bloom, amante da água, tirador de água, portador da água, voltando ao fogão, admirava?

Sua universalidade: sua uniformidade democrática e constância em sua natureza em procurar o próprio nível: sua vastidão no oceano da projeção de Mercator: sua imensurável profundidade na fossa de Sunda excedendo 8000 braças: a inquietação de suas ondas e partículas superficiais percorrendo em turnos todos os pontos da costa: a independência de suas unidades: a variabilidade das condições marinhas: sua imobilidade hidrostática na calmaria: sua turgidez hidrocinética nas marés baixa e de primavera: sua subsidência depois da devastação: sua esterilidade nas calotas circumpolares, ártica e antártica: sua importância climática e comercial: sua preponderância de 3:1 sobre a terra seca: sua hegemonia indisputável estendendo-se em léguas quadradas por toda a região abaixo do trópico subequatorial de Capricórnio: a estabilidade multisecular de sua bacia primordial: seu leito marrom-alaranjado: sua capacidade de dissolver e manter em solução todas as substâncias solúveis incluindo milhões de toneladas dos metais mais preciosos: sua lenta erosão de penínsulas e ilhas, sua persistente formação de ilhas e penínsulas homotéticas e promontórios em declive: seus depósitos aluviais: seu peso e volume e densidade: sua imperturbabilidade em lagunas e lagoas dos planaltos: sua gradação de cores nas zonas áridas e temperadas e frias: suas ramificações veiculares em correntes continentais riocontidas e rios afluentes a derramar no oceano com seus tributários e correntes transoceânicas, correntedogolfo, cursos norte e sul e equatorial: sua violência em maremotos, trombas-d’água, poços artesianos, erupções, torrentes, turbilhões, enchentes, ressacas, divisores d’águas, bifurcações de água, gêiseres, cataratas, redemoinhos, voragens, inundações, dilúvios, aguaceiros?

Bicho, juro que enquanto eu traduzia o trecho, o aquário da sala rachou e abriu uma fenda atravessando o piso de vidro. A Vanessa deu um berro, cheguei e o aquário tinha formado umas três cachoeiras independentes, que estavam escorrendo pela mesa. Tartarugas por toda parte. A pressão arrebentou com o fundo, se tivesse acontecido de madrugada teria alagado a sala inteira. Em seguida, haveria um incêndio, obviamente. Já percorri esse cenário várias vezes na cabeça, e sei mais ou menos o que salvar no caminho. Tenho, inclusive, umas três variações para intensidades de fogo diferentes.

Mas enfim, quis traduzir esse trecho também porque é a) fácil e b) sobre água, assunto recorrente nas últimas cartas. Ainda falta uma parte grande, todavia tenho uma emergência quelônica a resolver. Fica para a próxima.

Na sexta, vou direto do aeroporto para a churrascaria, oquei?

Abraços,

André

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