Escravos de Marc Ferrez

Fotografia

09.10.13

Na ANPOCS 2013, a antropóloga e historiadora Lilia Moritz Schwarcz participou da mesa Emancipações – inclusão e exclusão, desafios do passado e do presente, a propósito da exposição homônima que esteve em cartaz na USP de 28 a 30 de outubro. Composta por fotografias de Marc Ferrez pertencentes ao acervo do Instituto Moreira Salles, a mostra busca colocar em pauta o problema das emancipações da escravidão nas Américas e suas consequências. A exposição está agora em cartaz, de 19 de abril a 16 de agosto, no centro cultural de Poços de Caldas.

Dizia o antropólogo Franz Boas que “o olho que vê é órgão da tradição”. O fato é que ninguém consegue ver com olhos livres: destituídos das pré-concepções de seu tempo e cultura. Não poucas vezes adaptamos o ângulo para que eles se acomodem às grossas lentes da cultura, a qual, por sua vez, tem a mania de deturpar, traduzir, selecionar.

Talvez por isso hoje em dia cause certo espanto observar como, nas fotos do Brasil Oitocentista, a escravidão aparece de forma não só frequente como sem pejas ou qualquer tipo de constrangimento. Ao contrário, a impressão legada é de uma “naturalização” desse sistema que pressupunha a posse de um homem por outro, e se pautava em inúmeras formas de constrangimento e todo tipo de violência.

Por vezes posando, em outros momentos embaraçados diante das lentes intrometidas; em algumas situações mostrando incômodo em meio aos estúdios com seus cenários artificiais, em outras revelando desenvoltura; posando em situações cotidianas ou tomados de maneira estanque nos registros da ciência e da polícia; o fato é que escravizados aparecem numa infinidade de fotografias e de maneiras variadas. Essa cartografia perversa revela, por sua vez, como esse sistema era corriqueiro e “exemplar”, no Brasil, até porque apresentado e vendido no exterior como um “produto exótico” desse país tropical.

Esse amplo painel da escravidão — tão rico como perverso – pode ser considerado o resultado imediato de dois eventos coincidentes: de um lado, a fotografia entrou cedo no Brasil e já nos anos 1840 encontrava clientela nesse país carente de representação. De outro, o sistema escravista acabou tarde e o Brasil ficou com a lamentável marca de ter sido o último país do Ocidente a abolir a escravidão. Além do mais, o sistema esteve presente no país como um todo, e acabou sinonimizando o lugar do trabalho, fosse ele realizado nas cidades, nas minas ou no campo.

E dentre essa larga amostragem – que flagrou escravizados como tipos, como modelos exóticos, como trabalhadores dedicados ou amas devotadas e dispostas ao lado de suas crias brancas –, não há como escapar das lentes de grandes nomes da fotografia brasileira oitocentista, como Marc Ferrez e Victor Frond.

A documentação do trabalho nas fazendas, em particular, foi realizada tanto por Frond em 1859/60, como por Ferrez na década de 1880, e em ambos os casos vemos a montagem da representação naturalizada da escravidão: tudo em seu lugar. As imagens retratam o trabalho escravo, feitorizado e generalizado a partir do sistema cafeeiro do Sudeste do país, construindo uma representação que está a serviço principalmente da valorização dos aspectos de organização da produção e do trabalho na economia do café. Apesar disso, as imagens também evidenciam e denunciam a precariedade da vida dos trabalhadores, submetidos ao sistema escravista, baseado em formas de organização e técnicas de trabalho sugeridas como arcaicas.

No caso de Marc Ferrez, se ele se preocupou em edenizar a natureza pujante dos trópicos, não deixou de captar, à sua maneira, os “naturais” desse país. Em suas fotos, realizadas em trabalhos comissionados que simultaneamente registram e constroem visualmente as fazendas de café como representação idealizada da principal estrutura produtiva da economia do país naquele período, o escravismo aparece retratado de maneira ordeira, organizada e com uma hierarquia que de tão estabelecida mais parece obra da própria natureza.

Nas imagens, apenas o senhor ou por vezes o feitor calçam sapatos, assim como permanecem na frente da fila, ou vestem-se de maneira a diferenciar, visivelmente, sua posição e lugar. Além do mais, o trabalho surge sempre como “digno”, e equilibrado. Tal equilíbrio se inscreve nas linhas de trabalhadores bem dispostas e perfiladas, nos escravizados divididos de maneira milimetricamente equidistante, ou nos coletores de café que se dividem pelas montanhas de forma criteriosa. Ninguém parece criticar ou suspeitar da hierarquia, aqui exposta de forma ideal. Trata-se, pois, de um tipo de fotografia que constrói meticulosamente a realidade, procurando transmitir um ar de naturalidade e de mero registro etnográfico. Nesse sentido, uma verdadeira retórica visual.

Mas a grande especificidade, e por que não dizer também virtude, do documento fotográfico está no fato de ele nunca controlar integralmente toda a situação, em função de seu caráter de imagem técnica que se materializa pela síntese da captura de todos os elementos constitutivos da imagem projetada no interior da câmera em um determinado momento e lugar, e não pela construção progressiva, consciente e analítica de sucessivos elementos figurativos que comporão o quadro final, como no caso da pintura e do desenho.

Permanece, assim, no âmbito da representação fotográfica, sempre muito do acaso, do detalhe e do fortuito, e serão estes elementos que em última instância colaborarão para que o registro fotográfico orbite permanentemente na fronteira entre índice e representação, entre “janela para o mundo” e “espelho para a alma” do autor, entre, enfim, o inescapável figurativismo documental da imagem, por um lado, e a intencionalidade artística e mesmo retórica do fotógrafo, por outro. E é nesta fronteira, própria do campo da fotografia, que surge o espaço para o imprevisto que escapa ao controle do artista, e mesmo para a própria ambiguidade que caracteriza este documento visual, conferindo a ele camadas e densidades distintas, tanto do ponto de vista do autor, como da leitura e apropriação posterior pelo público.

É por isso que há uma grande distância entre observar as fotos destes trabalhos comissionados de Ferrez nas fazendas de café a partir de seu conjunto – que é, num primeiro momento, construído como um grande teatro da ordem (onde cada um conhece muito bem o seu papel) a serviço da representação do sistema produtivo vigente –, ou observá-las de perto e no detalhe. Quando ampliadas, podem ganhar um sentido inesperado, muitas vezes dissonante de sua construção retórica principal.

Os mesmos indivíduos escravizados, quando observados no detalhe, contracenam diante das lentes, ora mostrando surpresa, ora reação, ora embaraço, ora diversão, ora altivez ou mesmo desfaçatez. Não poucas vezes com suas expressões faciais e gestos corporais eles roubam a cena, introduzindo um outro mundo: os vários mundos da escravidão.

Ao invés da aparente reação passiva, do aceite mudo, no detalhe observamos várias transgressões, inúmeras formas de agenciar lugar e espaço.

Dizia a rainha dos franceses que “de perto ninguém é normal”. Nesse jogo de tomar a foto no atacado e no varejo – de longe e de perto –, quem sabe ocorra o oposto, “de perto todo mundo pode e tem o direito de ser normal”. Mais do que propriedades ou figurantes com papéis prévia e exteriormente demarcados, os escravizados negociam efetivamente nos registros fotográficos, nos pequenos sinais que deixaram no tempo e na imagem, seu lugar e condição.












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